Cristina Mestre
Muitos de nós conhecem os métodos através dos quais os políticos e os
seus assessores de imprensa influenciam a opinião pública. Digamos que isso já
é um dado adquirido nas chamadas democracias ocidentais e, por isso, por vezes
somos cépticos em aceitar propostas políticas, que tantas
vezes são criadas artificialmente nos gabinetes das empresas de
assessoria.
Ora essas «tecnologias» parecem brincadeiras de
crianças comparadas com uma relativamente recente (desenvolvida nos anos 90)
que tem por objectivo tornar aceitável na sociedade algo que, antes,
era totalmente inaceitável e intolerável.
Trata-se da Janela de Overton, um
modelo de engenharia social criado por Joseph P. Overton (1960–2003),
ex-vice-presidente de um think tank norte-americano
chamado Mackinac Center for Public Policy (Centro Mackinac para Políticas
Públicas).
Overton criou um modelo para demonstrar como um
pequeno grupo de pensadores, (think tank) pode
mudar de forma intencional e gradual a opinião pública. A Janela de
Overton é o conjunto de ideias «aceitáveis» num dado momento na
sociedade.
A gradação das opiniões da sociedade em relação a
determinado tema vão desde:
Intolerável (impensável);
Radical;
Aceitável;
Sensato;
Consensual;
Consagrado em políticas públicas.
Esta gradação corresponde a uma outra: proibido,
proibido com ressalvas, neutro, permitido com ressalvas, permitido livremente.
Os think tanks constituem
conjuntos de pessoas que produzem e divulgam opiniões fora da Janela de
Overton com a intenção de tornar a sociedade
mais receptiva a tais ideias e políticas públicas.
Quando esse grupo de fazedores de opinião quer
promover uma ideia que está fora do que a opinião pública considera razoável,
ou seja, que a sociedade não aceita, ele pode adoptar uma série de
procedimentos graduais que farão as pessoas mudar completamente de ideias
em pouco tempo.
Assim, através da
sua acção nos media, vai-se introduzindo no discurso
público ideias a princípio consideradas inaceitáveis, radicais,
impossíveis de implementar, mas que, com a sua exposição ao público, passam de
inaceitáveis a toleráveis e, posteriormente – na última fase – são consagradas
na legislação.
Aplicando o modelo à vida política, constata-se que
numa sociedade existe um conjunto de temas políticos que não causam polémica,
ou seja, de entre todas as políticas públicas possíveis, há um conjunto delas
que é aceite pela maioria da população sem que haja grandes debates. Esta é
a Janela de Overton.
Como já dissemos, a posição da janela não é
imutável, sendo que ela pode ser manipulada para introduzir novos temas ou
mesmo excluir temas que já foram aceitáveis. Os políticos que desejem ter mais
hipóteses de ser eleitos apenas devem assumir posições políticas que se
encaixem dentro da Janela de Overton.
Para entender como a opinião pública pode ser
mudada gradualmente costuma-se usar o exemplo do casamento gay (e também da
eutanásia infantil). Durante anos, a Janela de Overton esteve
na área do proibido, a sociedade não podia aceitar a ideia do casamento entre
pessoas do mesmo sexo. Com a constante exposição dos argumentos pró-gay nos media,
a janela foi-se deslocando para proibido com ressalvas, depois para neutro, até
chegar onde está hoje: permitido com ressalvas. Em breve será permitido
livremente. Para que haja o deslocamento da Janela de Overton para
posições que sejam de interesse de determinados grupos é aplicado um esforço
altamente profissional, que faz parte do que se convencionou chamar de engenharia
social. Este esforço é assegurado por um enorme número de especialistas em
opinião pública: técnicos, cientistas, assessores de imprensa, relações
públicas, institutos de pesquisa, celebridades, professores, jornalistas, etc..
Muito curioso é o facto de tais temas (casamento
gay, eutanásia) já não nos causarem estranheza. Como se viu, eles já passaram
por todo o processo de conversão de «inaceitável» em «consagrado na
legislação».
Mas um conhecido cineasta russo, Nikita Mikhalkov,
no seu vídeo-blog Besogon. TV, propõe-nos, para compreender melhor este
processo, um tema que ainda é intolerável na sociedade: o canibalismo.
Creio que o facto de ter escolhido uma prática que
hoje é totalmente proibida e inaceitável facilita a nossa compreensão de como
as coisas se processam ou poderão processar. Há ainda outros temas que hoje a
sociedade não tolera mas que pode vir a tolerar, como a eutanásia infantil ou o
incesto.
Segundo ele, o deslocamento da Janela de
Overton no que toca ao canibalismo poderá passar pelas seguintes
etapas:
Etapa 0 – É o
estado actual, o tema é inaceitável, não se discute na imprensa ou em
geral entre as pessoas.
Etapa 1 – O tema
passa de «completamente inaceitável» para apenas «radical». Alegando que deve
haver liberdade de expressão e que não deve haver tabus, o tema começa
timidamente a ser discutido em pequenas conferências, onde se obtém uma
declaração de um cientista respeitável, promove-se o debate «científico». É
criada, digamos, uma Associação de Canibais Radicais, que passa a ser citada
nos media. Aqui o tema deixa de ser tabu, é introduzido no chamado
espaço informativo.
Etapa 2 – O tema do
canibalismo passa de «radical» para a área do «possível». Os cientistas
continuam a ser citados, é criado um nome elegante: já não há canibalismo mas
sim, por exemplo, «antropofagia». Posteriormente este termo passa também a ser
considerado ofensivo e a prática começa a ser designada, suponhamos, por
«antropofilia». O objectivo é desligar a forma da designação do seu
conteúdo. Paralelamente é criado um precedente histórico de apoio. Pode
ser um facto mitológico, um facto actual ou apenas inventado mas,
o mais importante, é que contribua para legitimar a prática. O
principal objectivo desta etapa é retirar parcialmente a
«antropofagia» da ilegalidade, nem que seja num único momento histórico.
Etapa 3 – Passa-se
da fase do «possível» para a fase do «racional» ou «neutro». São apresentados
argumentos como «necessidade biológica». Afirma-se que o desejo de comer carne
humana pode ser genético, «próprio da natureza humana». Em caso de fome grave,
de «circunstâncias insuperáveis», uma pessoa livre deve ter o direito de fazer
escolhas. Não se deve esconder a informação para que todos possam assumir que
são «antropófilos» ou «antropofóbicos».
Etapa 4 – Na
opinião pública é criada uma polémica artificial sobre o tema. A sua
popularização apoia-se não só em personagens históricas ou mitológicas mas
também em figuras mediáticas actuais. A antropofilia começa a entrar
massivamente nas notícias, nos talk-shows, no cinema, na música pop,
nos videoclips. Um dos métodos da popularização é o chamado «olhe à
sua volta». Por acaso você não sabe que um conhecido compositor é antropófilo?
Etapa 5 – Nesta
etapa o tema é lançado no top da actualidade: começa a reproduzir-se
automaticamente na imprensa, no show business e… na política.
Nesta etapa, para justificar os adeptos da legalização, é utilizada a
«humanização» dos adeptos, («são pessoas criativas», «os antropófilos são
vítimas da educação que tiveram», «quem somos nós para os julgar?»
Etapa 6 – Nesta
fase, a prática passa de «tema popular» para o plano da «política actual».
Começa a ser preparada a base legislativa, aparecem grupos de lobby,
publicam-se pesquisas sociológicas que apoiam os adeptos da legalização.
Introduz-se um novo dogma – não se deve proibir a «antropofagia». Aprovada
a lei, o tema chega às escolas e jardins de infância e, consequentemente, a
nova geração já não conhece como poderá pensar de forma diferente.
Como disse acima, este exemplo sugerido pelo
cineasta Nikita Mikhalkov não deixa de ser hipotético.
No entanto, não teria sido
assim que todas as «novas práticas», impensáveis há poucas décadas, entraram na
nossa sociedade e se tornaram aceitáveis aos olhos de toda a gente?