quarta-feira, 21 de março de 2018

«A institucionalização de crianças é um negócio rentável»



A AMARCA — Associação e Movimento de Alerta à Retirada de Crianças e Adolescentes é uma associação recente, criada «para dar voz a quem sabe que sozinho não pode lutar contra este sistema, sobretudo mulheres vítimas de violência doméstica a quem foram retirados os filhos» segundo o advogado Gameiro Fernandes, que aponta várias falhas ao sistema legal e à Segurança Social neste campo, questões que esta entidade refuta.


Com escritório no concelho do Seixal, Gameiro Fernandes é um dos mentores da AMARCA e o seu representante legal, com quem o Diário do Distrito falou sobre o crescente número de processos de institucionalização de crianças e os objectivos da associação.

O advogado Gameiro Fernandes
Entrevista de Carmo Torres,
Jornal do Distrito, 2017-08-13

«A AMARCA não existe para resolver problemas, mas sim para os denunciar e apresentar as soluções» explica. «É a voz de todos os que sofreram a atrocidade de ver serem-lhes retirados os filhos, já assessorou mais de trezentas famílias e conta com a sensibilidade da comunicação social para denunciar situações às quais ninguém pode ficar indiferente.»

Por esse motivo, têm sido desenvolvidas várias reuniões com os partidos com assento parlamentar, comissões e outras entidades, «a quem demos a conhecer a realidade e solicitámos alterações ao sistema e em questões legislativas» e a recepção tem sido positiva.

«Fomos recebidos por todos excepto pela Comissão dos Direitos, Igualdades e Garantias e também não tivemos resposta por parte do Presidente da República». Do encontro com a CPCJ – Comissão de Protecção de Crianças e Jovens «foi anunciada a criação de um laboratório de observação de abusos, onde poderá finalmente ser possível dar conta das situações que estas famílias têm sofrido». Na agenda está ainda a reunião com a Procuradoria Geral da República que será realizada em Setembro.

O envolvimento de Gameiro Fernandes com a AMARCA surgiu na sequência de «vários processos de regulação de responsabilidades parentais algo exagerados que me vieram parar às mãos. E foi a minha consciência de que algo estava errado em todo esse processo, que me levou a idealizar com os pais uma associação para denunciar o que se passa, criando uma almofada de conforto para proteger os progenitores a quem foram abusivamente retirados os filhos, e estamos a falar de famílias de todos os estratos sociais.»


«Se a institucionalização não fosse rentável,
não surgiriam tantas instituições»

«Indigna-me que exista a possibilidade de alguém estar a ganhar dinheiro à conta do sofrimento de crianças e dos progenitores. Nos últimos dois anos surgiram cerca de 200 novas instituições, que recebem da Segurança Social 950 euros por cada criança institucionalizada. 

Se cada uma das instituições tiver a seu cargo 25 crianças, recebe 23,750 mil euros por mês, com a alimentação e o vestuário a ser assegurados pelo Banco Alimentar.Se isto não fosse rentável, não apareceriam tantas instituições, dai assistirmos também a um aumento exponencial do número de sinalizações por parte das técnicas e de retiradas por parte dos tribunais devido à pressão que estas novas instituições vieram criar, que chegou à ordem dos cinco mil casos nos últimos anos e de todos os estratos sociais.»

Mas a institucionalização não devia ser o último passo? O advogado explica que «antes da retirada das crianças, há um critério na lei que passa pela avaliação e o esgotamento das hipóteses da «família alargada». Qualquer criança tem tios, avós, até irmãos, que queiram ou possam ficar com eles. Acontece que hoje em dia os tribunais descartam por completo essa medida.»

Apesar considerar que existem situações reais de risco para crianças, «porque há progenitores que não o sabem ser», considera que «se a maior parte das crianças recentemente institucionalizada o foi devido a questões de dificuldades financeiras das famílias, então porque os 950 euros não são entregues às famílias, ou não lhes é garantido um salário mínimo para ajudar a sua sustentabilidade, desde que comprovativamente gastos para o bem-estar da criança e em bens essenciais?

As crianças são «acolhidas» e ficam ali nos abrigos em «prisão domiciliária» a aguardar a adopção, dando dinheiro a ganhar a estes, muitas desde tenra idade até chegarem a adultos, porque depois temos os bloqueios à adopção, e a partir de determinada idade deixam de ser apetecíveis para os pais adoptivos e outros já adolescentes que já sabemos não irão para adopção.»

Num balanço em termos nacionais, Gameiro Fernandes considera que existem zonas do país onde «há um elevado número de crianças retiradas às famílias, como em Cascais, Matosinhos, Sintra e Mafra, para onde foi um novo juiz que em apenas dois meses já deu para adopção dez crianças».

Reafirmando que os processos de retirada de crianças acontecem em todos os estratos sociais «e conheço até casos com médicos», deixa uma questão: «porque não vemos institucionalização de crianças ciganas? Porque se calhar essas famílias reagem de forma que causa receio aos técnicos da Segurança Social.»

O advogado aponta ainda outra realidade. «Há crianças nascidas nos PALOP que são trazidas para Portugal, para instituições. Qual não é o pai que quer o melhor para o seu filho? Mas então porque não funcionam essas instituições, na sua maioria religiosas, nos países africanos? É que em Portugal recebem também valores da Segurança Social por cada criança institucionalizada, e que nem podem passar pelo processo de adopção por falta de documentos.»



«O sistema leva à suspeição»

Gameiro Fernandes considera que «o actual sistema permite a suspeição aos olhos dos cidadãos, porque na maioria das instituições de abrigo as direcções integram um procurador ou um juiz e funcionários da Segurança Social. Ou seja: quem sinaliza e quem retira são as mesmas pessoas que acolhem depois essas crianças nas instituições.»

Lamenta a posição do Conselho Superior de Magistratura «que já veio dizer que não vê nenhum obstáculo a que um juiz faça parte de uma associação. Não quero criar suspeição sobre os envolvidos. Quem está à frente destas pode ser integra, mas podemos garantir o mesmo com as próximas? Tudo isto é muito grave, sobretudo em questões tão sensíveis quanto as que tocam crianças».

Como solução, aponta «a criação de um sistema que proibisse essa aparência promíscua, através de uma incompatibilidade em que nem os juízes, advogados, procuradores ou funcionários da Segurança Social pudessem fazer parte dessas instituições, porque não faz sentido alguém sinalizar uma criança e fazer parte da instituição que a vai acolher.»

E dá como exemplo o actual presidente da CPCJ, entidade que sinaliza as crianças em risco. «Sem querer duvidar da sua integridade, trata-se de um juiz conselheiro que é também o presidente da associação que mais crianças acolhe em Portugal, a «Crescer e Ser». Ou seja, temos reunido numa única pessoa quem sinaliza, quem retira e quem acolhe.»

Processo legal não apoia a família

Na sua óptica, «as crianças são retiradas às famílias de forma «leve», sem que sejam esgotadas todas as possibilidades legais e sem a ponderação que cada caso merece. Estamos a falar dos direitos das crianças de crescerem com os seus progenitores e que só devem ser retiradas quando estes não souberem cuidar delas.»

E acusa os «juízos de família que se prestam a este tipo de situações. O juiz tem o poder absoluto para decidir, muitas vezes com base em relatórios que não são correctos. E é também um disparate que não seja obrigatória a constituição de advogado nestes casos, excepto nos recursos.

E mesmo aí, quando a decisão já está tomada e realizada, o advogado vê-se perante limitações de acesso, porque os processos são sigilosos, só pode aceder com especial favor do juiz e por vezes nem cópias está autorizado a tirar. Entretanto, a criança já está institucionalizada, sem poder ver os pais, e depois vêm com a desculpa de que «não há laços entre esta e os pais», ou apenas os pode ver em ‘visitas acompanhadas’.»

As «visitas acompanhadas» permitem aos progenitores estar com as crianças mediante o acompanhamento de técnicos. «E aqui entra o segundo negócio, porque há instituições que se destinam exclusivamente às visitas assessoradas, a quem a Segurança Social paga por cada visita.

Ou seja, os tribunais depois de retirarem as crianças, e de forma a restabelecerem os laços familiares, permitem que ocorram visitas, numa salinha onde são supervisionados por técnicos que apontam as vezes que a mãe dá beijinhos no filho, ou as frases que dizem, relatórios que são depois enviados para o tribunal, o que considero vergonhoso.

Ao fim de cerca de um ano, é decidido que «agora já podem ir passear para o jardim», e lá vão os pais com a criança umas horas, com os técnicos atrás. Vêm depois as visitas a casa dos pais, as pernoitas, etc., e enquanto se tira uma criança de um dia para o outro, para se entregar novamente a criança aos pais passaram dois anos, em que uma instituição esteve a ganhar dinheiro com a manutenção dessa criança…»

Gameiro Fernandes alerta para o facto de que «no sistema que está instalado, bastará uma denúncia anónima de um vizinho, a dizer que a criança chora em casa todo o dia, para que as técnicas do IPS entrem em acção. E se tiverem uma pré-intenção para institucionalizar a criança, não desistem enquanto os pais não assinarem um protocolo de intervenção, o que lhes permite a supervisão e todos os motivos podem servir para colocarem nos relatórios, desde o cheiro da criança à forma como a mãe ralha com ela.»



Dedo apontado à Segurança Social

Gameiro Fernandes é incisivo nas criticas que faz a quem elabora os relatórios de sinalização, as técnicas da Segurança Social. «São rainhas dentro daquele feudo. Ninguém as controla, ninguém as pune.»

O advogado acusa ainda que «crianças que tenham proveniência de uma família pobre são automaticamente «rotuladas» como estando em perigo, assim como mães que já tenham estado institucionalizadas, estão marcadas à partida pela Segurança Social. E temos casos desses em Portugal. Há mães que passaram por isso, querem agora refazer a sua vida e têm medo de ter mais filhos porque receiam que a Segurança Social lhos retire também.»

A falta de supervisão de quem elabora os relatórios, «porque não há ninguém dentro da Segurança Social que verifique se é verdadeiro o que descrevem» e a falta de punição perante as queixas, «basta perguntar quantas técnicas foram punidas mercê de queixas realizadas pelos progenitores» levaram à criação da AMARCA.

«As técnicas sinalizam os progenitores e as crianças e a AMARCA sinaliza as técnicas que prevaricam. Nos casos mais graves, são feitas participações à Polícia Judiciária, que irá averiguar se há ou não matéria criminal e se o Instituto de Segurança Social não agir perante o que foi apurado, passa a estar conivente com a situação denunciada.»

Lamenta que «até agora o IPS não puniu uma única técnica por queixas, e algumas em situações extremas, como um caso em que é defendida a retirada aos progenitores porque «a criança não cheira a fresco»!

Em muitas queixas, feitas na expectativa que as técnicas que erraram sejam punidas, a Segurança Social faz um inquérito interno, que anda lá dentro de bolandas, e arquiva o processo, sem dar conhecimento ao queixoso, e sem lhe prestar informações mesmo solicitadas, até prescrever o direito de impugnação. É a Segurança Social que protege as técnicas que devia punir por cometerem erros. Actualmente é praticamente inócuo para a instituição e para as suas técnicas qualquer queixa apresentada.»


Os relatórios das técnicas são, na maior parte dos casos, a base que leva o tribunal à decisão de institucionalização. «Um juiz que tem um relatório a dizer que determinada criança está em risco, e de decidir pela não retirada desta da família, corre o risco de lhe caírem em cima se a criança vier a ser molestada. Têm de confiar em quem elabora profissionalmente os relatórios e, infelizmente muitos dos juízes do Tribunal de Família são inexperientes, pelo que uma das solicitações da AMARCA ao Parlamento é que sejam destacados juízes com mais maturidade e mais experiência.»

Um dos casos em que a AMARCA interveio e que aponta como exemplo, ocorreu em Almada. «Depois de uma criança ter sido institucionalizada, e no recurso ao Tribunal da Relação, o juiz desacreditou completamente as técnicas do IPS que levaram à sentença da retirada da criança e à sua institucionalização. Foi ordenada a entrega da criança à progenitora em Fevereiro deste ano. Apenas em Maio a mãe obteve autorização para trazer a criança por uns dias para casa, e esta só voltou definitivamente em Julho. A criança, com dois anos, esteve afastada da mãe cinco meses.

Mais, as técnicas da instituição onde a criança esteve, elaboraram um relatório onde consideravam que a mesma não devia voltar a casa porque a mãe não a compreendia. «Esqueceram-se» de dizer que durante os meses que a criança esteve na instituição ficou a cargo de uma empregada de limpeza ucraniana que não falava português. Isto é vergonhoso.»

Segurança Social responde aos argumentos

Perante as questões levantadas por Gameiro Fernandes, o Diário do Distrito contactou a Segurança Social, colocando algumas perguntas, ao que esta entidade respondeu através da assessoria de imprensa.

Financiamento de instituições

Foi-nos explicado sobre o acolhimento de crianças que «para o acolhimento de crianças e jovens em perigo com medida de promoção e protecção existe um total de 310 Casas de Acolhimento, das quais: 122 Centros de Acolhimento Temporário; 181 Lares de Infância e Juventude e 7 Lares de Infância e Juventude especializados, com os quais o número de acordos celebrados tem-se mantido estável, sendo que em 2011 existiam 311, aumentando em 2013 para 317, situando-se actualmente nos 310 acima mencionados.

Os custos de financiamento e com recursos humanos das casas de acolhimento encontram-se contemplados no valor da comparticipação mensal por criança/jovem acolhida. Nesse sentido, todos os gastos com alimentação e vestuário, bem como com as demais despesas de funcionamento encontram-se contemplados no valor financiado através do acordo de cooperação celebrado com cada casa de acolhimento.»

Legislação e institucionalização de crianças

Acerca dos princípios de intervenção do Sistema de Promoção e Protecção, refere a Segurança Social que «a intervenção em matéria de promoção e protecção dos direitos das crianças e jovens é orientada pelo princípio do superior interesse da criança ou jovem.

Os critérios para a retirada de uma criança aos seus progenitores, independentemente da sua raça ou etnia, estão legalmente estabelecidos na Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo (LPCJP), Lei n.º 142/2015, de 8 de Setembro, na qual se encontram definidos os pressupostos que legitimam a intervenção para promoção dos direitos e protecção da criança e do jovem em perigo (art.º 3.º da LPCJP) que tem lugar quando os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento, ou quando esse perigo resulte de acção ou omissão de terceiros ou da própria criança ou do jovem a que aqueles não se oponham de modo adequado a removê-lo.

São os tribunais que, no âmbito de um processo de promoção e protecção, e desenvolvendo as inúmeras diligências legalmente previstas, decidem a aplicação da medida mais adequada e proporcional à situação da criança e que pode determinar o seu afastamento, seja através do acolhimento em instituição ou família de acolhimento, seja pela definição da sua situação de adoptabilidade.

Em cumprimento dos princípios orientadores da intervenção da LPCJP, dos quais se destaca a subsidiariedade e prevalência da família ao longo dos anos, tem-se verificado, quer no âmbito das CPCJ, quer dos Tribunais, um claro predomínio das medidas de apoio junto dos pais e de outros familiares, em detrimento das medidas de acolhimento, estas sim que pressupõem o afastamento da criança do seu meio natural de vida.»

Equipas Multidisciplinares de Assessoria aos Tribunais

A Segurança Social refere também que «as competências do Instituto da Segurança Social, em matéria de Assessoria Técnica aos Tribunais, estão previstas na alínea u) do n.º 2 do art.º 7.º da Portaria n.º 135/2012, de 8 de Maio, que atribui ao Instituto a responsabilidade de «Apoiar, qualificar tecnicamente e monitorizar a assessoria técnica aos Tribunais, em matéria de promoção e protecção e tutelar cível».

«Para o efeito dispõe de Equipas Multidisciplinares de Assessoria Técnica aos Tribunais (EMAT), compostas por profissionais qualificados e especializados no âmbito da intervenção com crianças e jovens, que pautam a sua acção tendo por base o respeito por uma ética profissional que promova uma intervenção interdisciplinar e interinstitucional, revestida de partilha, participação, colaboração e confidencialidade, fundamentada na isenção e imparcialidade, designadamente no importante e essencial respeito pela protecção da segurança, saúde, bem-estar, educação e desenvolvimento das crianças e jovens.

A abordagem destas Equipas é multidisciplinar, sendo constituídas por Assistentes Sociais, Psicólogos, Juristas e Educadores, não se inserindo numa específica avaliação psicológica ou meramente social das situações trabalhadas. Os relatórios sociais que são produzidos traduzem exactamente esta abordagem multidisciplinar.

Cientes da exigência da intervenção que é veiculada por estas Equipas em representação do Instituto da Segurança Social, I.P., e dos impactos que a mesma assume na promoção dos direitos e protecção destas crianças e jovens e na garantia do seu direito a um crescimento equilibrado e saudável, este Instituto investe e continuará a investir na qualificação permanente dos seus profissionais, na promoção de iniciativas de construção de instrumentos e Manuais Técnicos com a colaboração próxima da Magistratura e na garantia de condições físicas, técnicas e tecnológicas para a qualificação e monitorização da intervenção.

Em matéria de promoção e protecção dos direitos das crianças e jovens, a Segurança Social actua em estreita colaboração com o Tribunal e em cumprimento das decisões judiciais.»

Funcionamento dos Centros de Apoio Familiar
e Aconselhamento Parental (CAFAP)

Segundo a Segurança Social «o Centro de Apoio Familiar e Aconselhamento Parental (CAFAP) é uma resposta social que pode ser desenvolvida através de acordo de cooperação com a Segurança Social ou através da iniciativa privada, desde que a actividade se encontre licenciada, nos moldes estabelecidos na Portaria n.º 139/2013, de 2 de Abril.

Relativamente à comparticipação familiar devida pela utilização dos serviços prestados, informa-se que no âmbito da cooperação com a Segurança Social não há lugar ao pagamento pelos serviços objecto do acordo de cooperação, com excepção das situações em que constitua opção da própria família, o encaminhamento para um outro CAFAP sem que o mesmo seja detentor de acordo de cooperação.»

Manuela Eanes. Esta hipócrita, Presidente do Instituto dito «de apoio» à criança (IAC),
e a sua Vice-Presidente Dulce Rocha vão ao ponto de defender a entrega de crianças
a «casais» de homossexuais.

(Excepto a foto do advogado Gameiro Fernandes, as ilustrações e legendas são nossas.)




domingo, 18 de março de 2018

A estranha verdade



Alguns anos depois de eu nascer, o meu pai conheceu uma estranha, recém-chegada à nossa pequena cidade.

Desde logo, o meu pai ficou fascinado com esta encantadora personagem e, de seguida, convidou-a a viver com a nossa família.

A estranha aceitou e, desde então, tem estado connosco.

Enquanto eu crescia, nunca perguntei sobre o seu lugar na minha família; na minha mente jovem já tinha um lugar muito especial.

Meus pais eram instrutores complementares... minha mãe ensinou-me o que era bom e o que era mau e meu pai ensinou-me a obedecer.

Mas a estranha era nossa narradora.

Mantinha-nos enfeitiçados por horas e horas com aventuras, mistérios e comédias.

Ela tinha  sempre respostas para qualquer coisa que quiséssemos saber de política, história ou ciência.

Conhecia tudo do passado, do presente e até podia predizer o futuro!

Levou a minha família ao primeiro jogo de futebol.

Fazia-me rir e fazia-me chorar.

A estranha nunca parava de falar mas o meu pai não se importava.

Às vezes, a minha mãe levantava-se e ficava calada, enquanto nós escutávamos o que a estranha tinha para dizer.

E só a minha mãe ia à cozinha para ter paz e tranquilidade (agora pergunto-me se ela teria rezado alguma vez para que a estranha se fosse embora).

O meu pai dirigia o nosso lar com convicções morais, mas a estranha nunca se sentia obrigada a honrá-las.

As blasfémias, os palavrões, por exemplo, não eram permitidos em nossa casa… nem por nós, nem pelos nossos amigos ou qualquer pessoa que nos visitasse.

Entretanto, a nossa visitante de longo prazo usava sem problemas a sua linguagem inapropriada, que às vezes queimava os meus ouvidos e fazia o meu pai retorcer-se e minha mãe ruborizar.

O meu pai nunca nos deu permissão para beber álcool. Mas a estranha incentivou-nos a tentá-lo e a fazê-lo regularmente.

Fez com que o cigarro parecesse fresco e inofensivo, e que os charutos e os cachimbos fossem distinguidos.

Falava livremente (talvez demasiado) sobre sexo. Os seus comentários eram às vezes evidentes, outras vezes sugestivos, e geralmente vergonhosos.

Agora sei que os meus conceitos sobre relações foram influenciados fortemente durante a minha adolescência pela estranha.

Repetidas vezes a criticaram, mas ela nunca fez caso aos valores de meus pais.

Mesmo assim, permaneceu no nosso lar.

Passaram-se mais de cinquenta anos desde que a estranha veio para a nossa família.

Desde então mudou muito; já não é tão fascinante como era no princípio.

Não obstante, se hoje alguém entrasse na casa de meus pais, ainda a encontraria sentada no seu canto, esperando que alguém quisesse escutar as suas conversas ou dedicar o seu tempo livre a fazer-lhe companhia...

O seu nome? Ah! O seu nome…

Chamamos-lhe Televisão.

É isso mesmo; a intrusa chama-se Televisão!

Agora ela tem um marido que se chama Computador, um filho que se chama Telemóvel e um neto de nome Tablet.

A estranha agora tem uma família. Será que a nossa ainda existe?