domingo, 18 de março de 2018
A estranha verdade
Alguns anos depois de eu nascer, o meu pai conheceu uma estranha, recém-chegada à nossa pequena cidade.
Desde logo, o meu pai ficou fascinado com esta encantadora personagem e, de seguida, convidou-a a viver com a nossa família.
A estranha aceitou e, desde então, tem estado connosco.
Enquanto eu crescia, nunca perguntei sobre o seu lugar na minha família; na minha mente jovem já tinha um lugar muito especial.
Meus pais eram instrutores complementares... minha mãe ensinou-me o que era bom e o que era mau e meu pai ensinou-me a obedecer.
Mas a estranha era nossa narradora.
Mantinha-nos enfeitiçados por horas e horas com aventuras, mistérios e comédias.
Ela tinha sempre respostas para qualquer coisa que quiséssemos saber de política, história ou ciência.
Conhecia tudo do passado, do presente e até podia predizer o futuro!
Levou a minha família ao primeiro jogo de futebol.
Fazia-me rir e fazia-me chorar.
A estranha nunca parava de falar mas o meu pai não se importava.
Às vezes, a minha mãe levantava-se e ficava calada, enquanto nós escutávamos o que a estranha tinha para dizer.
E só a minha mãe ia à cozinha para ter paz e tranquilidade (agora pergunto-me se ela teria rezado alguma vez para que a estranha se fosse embora).
O meu pai dirigia o nosso lar com convicções morais, mas a estranha nunca se sentia obrigada a honrá-las.
As blasfémias, os palavrões, por exemplo, não eram permitidos em nossa casa… nem por nós, nem pelos nossos amigos ou qualquer pessoa que nos visitasse.
Entretanto, a nossa visitante de longo prazo usava sem problemas a sua linguagem inapropriada, que às vezes queimava os meus ouvidos e fazia o meu pai retorcer-se e minha mãe ruborizar.
O meu pai nunca nos deu permissão para beber álcool. Mas a estranha incentivou-nos a tentá-lo e a fazê-lo regularmente.
Fez com que o cigarro parecesse fresco e inofensivo, e que os charutos e os cachimbos fossem distinguidos.
Falava livremente (talvez demasiado) sobre sexo. Os seus comentários eram às vezes evidentes, outras vezes sugestivos, e geralmente vergonhosos.
Agora sei que os meus conceitos sobre relações foram influenciados fortemente durante a minha adolescência pela estranha.
Repetidas vezes a criticaram, mas ela nunca fez caso aos valores de meus pais.
Mesmo assim, permaneceu no nosso lar.
Passaram-se mais de cinquenta anos desde que a estranha veio para a nossa família.
Desde então mudou muito; já não é tão fascinante como era no princípio.
Não obstante, se hoje alguém entrasse na casa de meus pais, ainda a encontraria sentada no seu canto, esperando que alguém quisesse escutar as suas conversas ou dedicar o seu tempo livre a fazer-lhe companhia...
O seu nome? Ah! O seu nome…
Chamamos-lhe Televisão.
É isso mesmo; a intrusa chama-se Televisão!
Agora ela tem um marido que se chama Computador, um filho que se chama Telemóvel e um neto de nome Tablet.
A estranha agora tem uma família. Será que a nossa ainda existe?
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