sexta-feira, 15 de janeiro de 2016
quinta-feira, 14 de janeiro de 2016
De que género é o teu sexo?
P. Miguel Almeida, sj,
Observador, 9 de Janeiro de 2016
Nem tudo o que somos é socialmente construído ou
exclusivamente biológico. Mas negar que a biologia é a base daquilo que somos é
negar a realidade.
A propósito dos presentes de Natal, discutiu-se
sobre se à feminilidade ou masculinidade das crianças ajuda ou desajuda dar
camiões ao menino e bonecas à menina. Se se deve vestir o filho de azul – ainda
que turquesa – e a filha de cor-de-rosa, ou se esta é uma atitude ofensiva e
provoca distúrbios psicológicos imperdoáveis.
Até há relativamente pouco tempo, em linguagem
comum, as pessoas tinham sexo e as coisas tinham género. A palavra género era
usada para categorizar gramaticalmente nomes, adjectivos, artigos e pronomes.
Num artigo de Ana García-Mina Freire (La categoría «género»: historia de una
necesidad), encontrei alguns dados históricos interessantes que uso para este
meu escrito.
A meados do século passado, John Money,
deparando-se com diversos casos de hermafroditismo, sentiu a necessidade de
empregar um termo complementar a sexo. O médico encontrara vários rapazes que
foram criados como raparigas devido a um síndrome feminizante testicular e
diversas raparigas criadas como rapazes por sofrerem de síndrome
andrenogenital. Devido a estas malformações congénitas dos órgãos sexuais e ao
consequente desenvolvimento de uma identidade construída sobre uma biologia que
a contradizia, a palavra sexo mostrava-se insuficiente para qualificar estas
pessoas.
Money adoptou, então, a palavra género. Sexo
referir-se-ia aos componentes biológicos que determinam se uma pessoa é homem
ou mulher, e género aludiria aos aspectos psicológicos e culturais que
constituem as definições sociais das categorias mulher e homem.
Do restrito âmbito das ciências biomédicas, o termo
género deu um rapidíssimo salto para as ciências sociais, graças ao movimento
feminista, e tornou-se uma das opções epistemológicas mais relevantes para
referenciar a relação entre homens e mulheres. Na IV Conferência Mundial sobre
as Mulheres (ONU), o género respeita «à forma como todas as sociedades do mundo
determinam as funções, atitudes, valores e relações que concernem ao homem e à
mulher, enquanto o sexo se refere aos aspectos biológicos que derivam das
diferenças sexuais. Portanto, o sexo de uma pessoa é determinado pela natureza,
mas o seu género é elaborado pela sociedade e tem claras repercussões
políticas».
O sexo é um dos critérios fundamentais na
organização e compreensão da interacção social. Cada sociedade desenvolve
modelos normativos que prescreve a cada sexo. Daí que a construção da nossa
identidade seja influenciada pelos modelos normativos da sociedade à qual
pertencemos.
Mas, em princípio, reconhecemos que um homem é
homem e uma mulher é mulher porque o seu corpo e o seu organismo os distinguem
como tal. Todos sabemos que há casos de androginia e transexualidade. E os que
não vivemos esta experiência na primeira pessoa, apenas podemos vislumbrar e
intuir o possível sofrimento de quem a vive. Mas as excepções tratam-se como
excepções. Deduzir daqui a geral – e até saudável – absoluta separação entre os
conceitos de sexo e de género é absurdo. Porque, embora a Conferência sobre as
Mulheres acima citada afirme que «o sexo é determinado pela natureza» e «o
género é elaborado pela sociedade», há já quem ideologicamente considere que
até essa é uma interpretação conservadora. Porque, como sabemos, já é possível
«escolher» ou «mudar de sexo». Ora, se elaboramos o género e escolhemos sexo,
tornámo-nos criadores de nós mesmos!
Ser mãe é diferente de ser pai. A mãe pode dar de
mamar ao filho sem sair do quarto; o pai tem que ir comprar o leite ao
supermercado. E esta é uma função social que decorre directamente do sexo, não
do género. Claro que daqui a defender que a mãe é mais apta para mudar as
fraldas ao filho só porque é mulher e isso lhe é natural… (e, já agora, que o
avental lhe fica a matar e que, como todos sabemos, ninguém faz a cama ou limpa
o pó tão bem como as mulheres…) é um salto injusto do sexo para o género que
funcionou durante demasiado tempo.
Neste sentido, o conceito de género veio ajudar, e
muito, à evolução e ao desenvolvimento ético das sociedades. Faz-nos tomar
consciência de que muitas das supostas características femininas ou masculinas
não são, afinal, mais do que construções sociais. E dos inúmeros abusos que se
lhes escondem por detrás. Quando, numa sociedade que sobrevaloriza o género
masculino face ao género feminino, se atinge uma maior igualdade de direitos e
oportunidades entre homens e mulheres, essa não é uma vitória apenas das
mulheres, mas do ser humano. Mesmo que a devamos agradecer às mulheres.
Manifestar a diferença ao vestir o menino de azul e
a menina de cor-de-rosa não é mau. A não ser que essa indumentária transporte
consigo todo o imaginário de homem eficaz e eficiente, gestor e executivo de
sucesso e, por outro lado, de mulher submissa, caseira para quem não faz
sentido uma carreira profissional digna e intelectualmente estimulante.
Retrocesso
Pedro Vaz Pato
Um relatório do Parlamento Europeu sobre direitos humanos que condena a prática da chamada «gestação de substituição» (vulgarmente conhecida por barriga de aluguer) foi recentemente aprovado por larga maioria. Nele se afirma com veemência que essa prática é contrária à dignidade humana das mulheres (porque reduz a mercadoria o seu corpo e a sua função reprodutiva), afecta de modo particular as mais pobres e vulneráveis, e deve ser abolida universalmente.
Movimentos feministas têm-se mobilizado vigorosamente no sentido dessa abolição. Em França, tem-se destacado a filósofa Silvanne Agacinsky, autora de um bem fundamentado livro sobre esta questão (Le corps em miettes, Flammarion, 2013) e promotora da plataforma Collectif pour le respect de la personne. A este movimento deram o seu apoio, entre outros, Lionel Jospin e Jacques Delors. Em Itália, surgiu um movimento análogo, denominado Se non ora quando-Libere. Livia Turco, conceituada política italiana de esquerda e feminista, afirmou considerar essa prática «abominável» e um grave retrocesso na perspectiva dos direitos da mulher (Avvenire, 8/12/2015). Na Suécia, esta causa é assumida pela plataforma de organizações feministas Sverigeskvinnolobby. Todas estas e outras organizações confluem na plataforma internacional Stopsurrogacynow.
Parece que estas iniciativas não têm qualquer eco entre nós, num momento em que volta ao Parlamento a discussão sobre a legalização da «gestação de substituição» (através de um projecto de lei do Bloco de Esquerda – n.º 36/XIII), depois de, na legislatura anterior, um projecto que chegou a ser aprovado na generalidade não ter sido aprovado na votação final. Parece que este é mais um dos temas «fracturantes» apresentados como marcas de uma política «progressista». Quando, noutros países, como vimos, muitas são as vozes tidas por «progressistas» e «de esquerda» (não todas – é certo), que rejeitam essa legalização.
É verdade que o projecto de lei em questão (como outros anteriormente apresentados) veda a exploração comercial da prática, onde residiriam os maiores riscos de aproveitamento do desespero das mulheres pobres. Mas nenhuma das iniciativas acima descritas faz a distinção entre uma «gestação de substituição» tida por «maligna» e outra tida por «benigna» porque não comercial. De acordo com o manifesto Se non ora quando-Libere, acima referido, a «gestação de substituição» nunca é um acto de liberdade ou de amor, é sempre um acto de desespero. A experiência tem revelado a extrema dificuldade em impedir a comercialização encapotada por detrás da suposta não onerosidade dos contractos. Só situações de grande carência económica levam mulheres a sujeitar-se a tão traumatizante experiência (não é por acaso que a prática se vem difundindo na Índia) e essa sujeição não pode considerar-se expressão autêntica de liberdade. E os malefícios da «gestação de substituição» não dependem do seu carácter comercial.
Quando a mãe gestante é familiar da mãe requerente, poderá estar afastado qualquer resquício de exploração comercial. Mas suscitam-se gravíssimas consequências que já foram designadas como «curto-circuito geracional»: a criança com uma mãe gestante que é, simultaneamente, sua avó ou sua tia.
Com a legalização da «gestação de substituição, quer o filho, quer a mãe, são reduzidos a objecto de um contracto (seja ele oneroso ou não). O abandono da criança é, não um evento inevitável que deva ser remediado através da adopção, mas uma consequência deliberadamente programada, institucionalizada pela lei, a qual veda a obrigação mais espontânea e natural que existe: a de assumir a vida que se gerou.
O filho nunca deixa de sentir esse abandono. Cada vez se conhece melhor os intercâmbios entre a mãe gestante e o feto e a importância desse intercâmbio para o salutar desenvolvimento físico, psicológico e afectivo deste. A criança não poderá experimentar a segurança de reconhecer, depois do nascimento, o corpo onde habitou durante vários meses.
A mãe gestante não pode deixar de viver a gravidez como sua e de sofrer com o abandono do filho que lhe é imposto. O útero é inseparável do corpo e da pessoa, não é um alojamento temporário, ou um instrumento técnico. A gravidez não é uma actividade como qualquer outra; transforma a vida da mulher fisica, psicologica e moralmente.
Em vários países, é reconhecido à mãe gestante o direito de se arrepender e ficar com a criança à sua guarda (o que não deixa de ser contraditório com a obrigação que assumiu perante os requerentes). Comenta a este respeito Sylviane Agacinsky: não significa isso o reconhecimento implícito de que se estão a «violentar sentimentos humanos profundos e legítimos» e a «ferir emoções humanas elementares»?
Com a ilusão de que assim se curam os dramas da infertilidade (o que não é verdade), e em nome de um pretenso «direito ao filho», corremos, assim, o risco de assistir passivamente a um grave retrocesso social.
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