quinta-feira, 14 de janeiro de 2016


De que género é o teu sexo?


P. Miguel Almeida, sj, Observador, 9 de Janeiro de 2016

Nem tudo o que somos é socialmente construído ou exclusivamente biológico. Mas negar que a biologia é a base daquilo que somos é negar a realidade.

A propósito dos presentes de Natal, discutiu-se sobre se à feminilidade ou masculinidade das crianças ajuda ou desajuda dar camiões ao menino e bonecas à menina. Se se deve vestir o filho de azul – ainda que turquesa – e a filha de cor-de-rosa, ou se esta é uma atitude ofensiva e provoca distúrbios psicológicos imperdoáveis.

Até há relativamente pouco tempo, em linguagem comum, as pessoas tinham sexo e as coisas tinham género. A palavra género era usada para categorizar gramaticalmente nomes, adjectivos, artigos e pronomes. Num artigo de Ana García-Mina Freire (La categoría «género»: historia de una necesidad), encontrei alguns dados históricos interessantes que uso para este meu escrito.

A meados do século passado, John Money, deparando-se com diversos casos de hermafroditismo, sentiu a necessidade de empregar um termo complementar a sexo. O médico encontrara vários rapazes que foram criados como raparigas devido a um síndrome feminizante testicular e diversas raparigas criadas como rapazes por sofrerem de síndrome andrenogenital. Devido a estas malformações congénitas dos órgãos sexuais e ao consequente desenvolvimento de uma identidade construída sobre uma biologia que a contradizia, a palavra sexo mostrava-se insuficiente para qualificar estas pessoas.

Money adoptou, então, a palavra género. Sexo referir-se-ia aos componentes biológicos que determinam se uma pessoa é homem ou mulher, e género aludiria aos aspectos psicológicos e culturais que constituem as definições sociais das categorias mulher e homem.

Do restrito âmbito das ciências biomédicas, o termo género deu um rapidíssimo salto para as ciências sociais, graças ao movimento feminista, e tornou-se uma das opções epistemológicas mais relevantes para referenciar a relação entre homens e mulheres. Na IV Conferência Mundial sobre as Mulheres (ONU), o género respeita «à forma como todas as sociedades do mundo determinam as funções, atitudes, valores e relações que concernem ao homem e à mulher, enquanto o sexo se refere aos aspectos biológicos que derivam das diferenças sexuais. Portanto, o sexo de uma pessoa é determinado pela natureza, mas o seu género é elaborado pela sociedade e tem claras repercussões políticas».

O sexo é um dos critérios fundamentais na organização e compreensão da interacção social. Cada sociedade desenvolve modelos normativos que prescreve a cada sexo. Daí que a construção da nossa identidade seja influenciada pelos modelos normativos da sociedade à qual pertencemos.

Mas, em princípio, reconhecemos que um homem é homem e uma mulher é mulher porque o seu corpo e o seu organismo os distinguem como tal. Todos sabemos que há casos de androginia e transexualidade. E os que não vivemos esta experiência na primeira pessoa, apenas podemos vislumbrar e intuir o possível sofrimento de quem a vive. Mas as excepções tratam-se como excepções. Deduzir daqui a geral – e até saudável – absoluta separação entre os conceitos de sexo e de género é absurdo. Porque, embora a Conferência sobre as Mulheres acima citada afirme que «o sexo é determinado pela natureza» e «o género é elaborado pela sociedade», há já quem ideologicamente considere que até essa é uma interpretação conservadora. Porque, como sabemos, já é possível «escolher» ou «mudar de sexo». Ora, se elaboramos o género e escolhemos sexo, tornámo-nos criadores de nós mesmos!

Ser mãe é diferente de ser pai. A mãe pode dar de mamar ao filho sem sair do quarto; o pai tem que ir comprar o leite ao supermercado. E esta é uma função social que decorre directamente do sexo, não do género. Claro que daqui a defender que a mãe é mais apta para mudar as fraldas ao filho só porque é mulher e isso lhe é natural… (e, já agora, que o avental lhe fica a matar e que, como todos sabemos, ninguém faz a cama ou limpa o pó tão bem como as mulheres…) é um salto injusto do sexo para o género que funcionou durante demasiado tempo.

Neste sentido, o conceito de género veio ajudar, e muito, à evolução e ao desenvolvimento ético das sociedades. Faz-nos tomar consciência de que muitas das supostas características femininas ou masculinas não são, afinal, mais do que construções sociais. E dos inúmeros abusos que se lhes escondem por detrás. Quando, numa sociedade que sobrevaloriza o género masculino face ao género feminino, se atinge uma maior igualdade de direitos e oportunidades entre homens e mulheres, essa não é uma vitória apenas das mulheres, mas do ser humano. Mesmo que a devamos agradecer às mulheres.

Manifestar a diferença ao vestir o menino de azul e a menina de cor-de-rosa não é mau. A não ser que essa indumentária transporte consigo todo o imaginário de homem eficaz e eficiente, gestor e executivo de sucesso e, por outro lado, de mulher submissa, caseira para quem não faz sentido uma carreira profissional digna e intelectualmente estimulante.

Como em quase todas as áreas da vida, também aqui os extremos não ajudam. Nem tudo o que somos é socialmente construído ou exclusivamente biológico. Mas negar que a biologia é a base daquilo que somos é negar a realidade. O ser homem ou o ser mulher, só porque se nasceu assim, traz consigo diferentes características e funções sociais que ultrapassam a biologia. E isso é saudável! Até onde se pode e deve ultrapassar, eis a questão.






Retrocesso


Pedro Vaz Pato

Um relatório do Parlamento Europeu sobre direitos humanos que condena a prática da chamada «gestação de substituição» (vulgarmente conhecida por barriga de aluguer) foi recentemente aprovado por larga maioria. Nele se afirma com veemência que essa prática é contrária à dignidade humana das mulheres (porque reduz a mercadoria o seu corpo e a sua função reprodutiva), afecta de modo particular as mais pobres e vulneráveis, e deve ser abolida universalmente.

Movimentos feministas têm-se mobilizado vigorosamente no sentido dessa abolição. Em França, tem-se destacado a filósofa Silvanne Agacinsky, autora de um bem fundamentado livro sobre esta questão (Le corps em miettes, Flammarion, 2013) e promotora da plataforma Collectif pour le respect de la personne. A este movimento deram o seu apoio, entre outros, Lionel Jospin e Jacques Delors. Em Itália, surgiu um movimento análogo, denominado Se non ora quando-Libere. Livia Turco, conceituada política italiana de esquerda e feminista, afirmou considerar essa prática «abominável» e um grave retrocesso na perspectiva dos direitos da mulher (Avvenire, 8/12/2015). Na Suécia, esta causa é assumida pela plataforma de organizações feministas Sverigeskvinnolobby. Todas estas e outras organizações confluem na plataforma internacional Stopsurrogacynow.

Parece que estas iniciativas não têm qualquer eco entre nós, num momento em que volta ao Parlamento a discussão sobre a legalização da «gestação de substituição» (através de um projecto de lei do Bloco de Esquerda – n.º 36/XIII), depois de, na legislatura anterior, um projecto que chegou a ser aprovado na generalidade não ter sido aprovado na votação final. Parece que este é mais um dos temas «fracturantes» apresentados como marcas de uma política «progressista». Quando, noutros países, como vimos, muitas são as vozes tidas por «progressistas» e «de esquerda» (não todas – é certo), que rejeitam essa legalização.

É verdade que o projecto de lei em questão (como outros anteriormente apresentados) veda a exploração comercial da prática, onde residiriam os maiores riscos de aproveitamento do desespero das mulheres pobres. Mas nenhuma das iniciativas acima descritas faz a distinção entre uma «gestação de substituição» tida por «maligna» e outra tida por «benigna» porque não comercial. De acordo com o manifesto Se non ora quando-Libere, acima referido, a «gestação de substituição» nunca é um acto de liberdade ou de amor, é sempre um acto de desespero. A experiência tem revelado a extrema dificuldade em impedir a comercialização encapotada por detrás da suposta não onerosidade dos contractos. Só situações de grande carência económica levam mulheres a sujeitar-se a tão traumatizante experiência (não é por acaso que a prática se vem difundindo na Índia) e essa sujeição não pode considerar-se expressão autêntica de liberdade. E os malefícios da «gestação de substituição» não dependem do seu carácter comercial.

Quando a mãe gestante é familiar da mãe requerente, poderá estar afastado qualquer resquício de exploração comercial. Mas suscitam-se gravíssimas consequências que já foram designadas como «curto-circuito geracional»: a criança com uma mãe gestante que é, simultaneamente, sua avó ou sua tia.

Com a legalização da «gestação de substituição, quer o filho, quer a mãe, são reduzidos a objecto de um contracto (seja ele oneroso ou não). O abandono da criança é, não um evento inevitável que deva ser remediado através da adopção, mas uma consequência deliberadamente programada, institucionalizada pela lei, a qual veda a obrigação mais espontânea e natural que existe: a de assumir a vida que se gerou.

O filho nunca deixa de sentir esse abandono. Cada vez se conhece melhor os intercâmbios entre a mãe gestante e o feto e a importância desse intercâmbio para o salutar desenvolvimento físico, psicológico e afectivo deste. A criança não poderá experimentar a segurança de reconhecer, depois do nascimento, o corpo onde habitou durante vários meses.

A mãe gestante não pode deixar de viver a gravidez como sua e de sofrer com o abandono do filho que lhe é imposto. O útero é inseparável do corpo e da pessoa, não é um alojamento temporário, ou um instrumento técnico. A gravidez não é uma actividade como qualquer outra; transforma a vida da mulher fisica, psicologica e moralmente.

Em vários países, é reconhecido à mãe gestante o direito de se arrepender e ficar com a criança à sua guarda (o que não deixa de ser contraditório com a obrigação que assumiu perante os requerentes). Comenta a este respeito Sylviane Agacinsky: não significa isso o reconhecimento implícito de que se estão a «violentar sentimentos humanos profundos e legítimos» e a «ferir emoções humanas elementares»?

Com a ilusão de que assim se curam os dramas da infertilidade (o que não é verdade), e em nome de um pretenso «direito ao filho», corremos, assim, o risco de assistir passivamente a um grave retrocesso social.