José Miguel Pinto dos Santos, Observador, 1 de Fevereiro de 2017
Agora que não há dor que não possa ser dominada com
cuidados paliativos adequados, fica a dúvida se o que se pretende não será o
«progresso» para uma sociedade sem piedade para com os mais fracos.
Hialarion era camponês, casado e, tudo indica, bom
pai de família. Provavelmente era natural da região de Oxirrinco, uma cidade do
Médio Egipto. Como falava grego é possível que fosse descendente de colonos
helenos, mas não é certo, porque após três séculos de governo Ptolemaico o
grego era língua franca no Egipto. Podemos supor que não tinha uma vida fácil
porque a certa altura teve de ir trabalhar, por uns tempos, para a longínqua
Alexandria. De lá escreveu, ou pediu a um escrivão que escrevesse, a seguinte
carta para a sua mulher Alis:
[recto] De Hilarion para Alis, sua irmã, saudações
sinceras, e também para os meus caros Berous e Apollonarion. Fica a saber que
ainda estamos neste momento em Alexandria. Não te preocupes se, quando os
outros regressarem, eu permanecer em Alexandria. Te imploro e suplico que cuides
bem do menino. Assim que recebamos o salário te o enviarei. Se deres à luz,
felicidades!, e se for rapaz deixa-o viver. Se for rapariga expõe-na [εκβαλε, literalmente:
deita-a fora]. Disseste [através de] Aphrodisias «Não me esqueças». Como te
poderei esquecer? Peço-te portanto que não te preocupes.
Vigésimo nono ano de César [1 a.C.], Pauni 23
[verso] Entregar a Alis da parte de Hilarion
[Oxyrhynchus Papyrus, 744]
Esta missiva demonstra que Hilarion era um amor de
pessoa: trabalhador esforçado e flexível, ternurento para com a mulher, pai
preocupado pelo filho, que não esquece de enviar saudações para os vizinhos.
Apesar de ser excelente pessoa, Hilarion era um homem do seu tempo: cortês e
prestável para quem lhe é útil, como a mulher que lhe cuida da casa, o filho
que lhe cuidará do futuro, e os vizinhos que lhe asseguram boa vizinhança, mas
implacável para quem não lhe serve para nada, como uma filha que só lhe traria
despesa. Esta era a visão que os homens tinham dos homens antes de serem
influenciados pela doutrina de Cristo: ou instrumentos ou empecilhos do seu
bem-estar, que merecem viver, os primeiros, e que podem ser descartados, ou
morrer, os segundos. Também era esta a visão que a sociedade tinha do Homem, e
que se encontrava espelhada nas leis e costumes um pouco por todo o mundo, na
lei romana e nos códices egípcios, no consuetudinário japonês e na legislação
chinesa, e que permitiam o aborto, o infanticídio, o golpe «de misericórdia», a
exposição de velhos e enfermos, a exterminação dos homens «não-pessoas» ou
«não-humanos» e, em não poucas civilizações, o sacrifício humano.