Teolinda Gersão
O Acordo Ortográfico foi um
processo infeliz, tratado nas costas da população dos países lusófonos, como se
a língua fosse propriedade de um grupo de linguistas e os Governos tivessem
legitimidade para mudar por decreto uma língua que não é propriedade sua, mas
do país e dos cidadãos.
O percurso errático do
Acordo Ortográfico arrasta-se há 23 anos (ou melhor, há 38, porque começou a
ser pensado em 1975) e ainda não está legalmente em vigor, porque as populações
dos vários países lhe resistem e porque, quando se tentou impô-lo pela força de
um decreto, o resultado foi o caos.
O que faltará acontecer para que os sucessivos Governos reconheçam que
pretendem a quadratura do círculo e que estas tentativas pura e simplesmente
não funcionam?
Recentemente a Presidente
Dilma adiou para 2016 a entrada em vigor do Acordo Ortográfico no Brasil, e, a
acreditar nos jornais, tomou essa decisão unilateralmente, sem consultar os
seus parceiros.
Pretende-se vender-nos a
ideia patética de que o português de grafia uniformizada (vulgo, o «acordês») é
a língua do poder e dos negócios.
Seguindo o «acordês» todos seríamos, a
reboque do Brasil, grandes potências emergentes, a caminho de um mundo
magnífico de poder e riqueza, partilhado por 240 milhões de falantes. Será que
não percebemos a irracionalidade desta ideia?
A verdade é que o Brasil –
ele sim – é uma grande potência emergente, o que nos alegra porque também nós o
amamos. Mas Portugal, e outros pequenos países lusófonos, jamais serão grandes
potências ou terão o peso do Brasil.
Esse peso não é partilhável, a nível
nenhum.
Manter em cada país a sua
variante da língua é uma marca de identidade e um património, que está acima do
poder de qualquer Governo. Porque os Governos passam e mudam, mas as línguas
não podem passar nem mudar como se fossem Governos.
É natural que o Brasil
pretenda maior protagonismo liderando estas alterações linguísticas. Mas os
restantes países lusófonos não têm nada a lucrar com isso, só têm a perder. E o
Brasil, como grande potência emergente que já é, não precisa de nós, a não ser
a nível simbólico. Porque, com Acordo Ortográfico ou sem Acordo Ortográfico, o
Brasil vai sempre cuidar dos seus negócios e dos seus interesses, e só deles, o
que é normal e legítimo: os países cuidam de si próprios, e tomáramos nós ter
em Portugal quem defendesse os nossos interesses como Dilma defende os do
Brasil.
Os laços e afectos só
existem a nível das pessoas. A nível dos países, há apenas interesses. Não
sentimos isso na pele, aqui na Europa? Estas mudanças linguísticas são apenas
uma jogada política. Em todos os outros aspectos, são incongruentes:
Só dois exemplos: se o
Acordo Ortográfico é fundamental para que nos entendamos, então por que razão
no Brasil os livros portugueses, escritos segundo o «acordês», são traduzidos
para o português do Brasil como se estivessem escritos numa língua estrangeira?
Por que razão «mesa de cabeceira» passa a «criado mudo», «ficou pasmado» a «ficou
pasmo», «foi apanhado pela polícia» a «foi pego pela polícia» etc. etc.?
Por que razão a nós nunca
nos passou pela cabeça traduzir para o português europeu Guimarães Rosa, João
Ubaldo Ribeiro, Ruben Fonseca ou qualquer outro autor?
Por que razão as livrarias
portuguesas têm bancas de livros brasileiros e a literatura do Brasil nos é tão
familiar, quando o inverso não se verifica?
Por que razão há cada vez
MENOS estudos de literatura portuguesa nas universidades brasileiras, e cada
vez MAIS estudos de literatura brasileira nas universidades portuguesas?
A resposta é simples:
porque Portugal se abriu há muitas décadas ao Brasil, cujos autores circulam
livremente entre nós, porque os sentimos como se também fossem «nossos»,
enquanto o Brasil sempre levantou barreiras alfandegárias intransponíveis aos
livros portugueses, que lá chegam a preços proibitivos, e na maior parte dos
casos nunca chegam.
A solução não está em
«acordizar», mas em ter um intercâmbio maior e mais simétrico, em conhecer-nos
melhor, valorizando as nossas diferenças.
Quanto ao «acordês» ser a
língua dos negócios, «acção» e «facto», por exemplo, são mais compreensíveis
para qualquer estrangeiro do que «ação» e «fato» (porque mais próximas de
«action» e «fact» em inglês, língua de recurso que é, e continuará a ser, a
língua franca dos negócios internacionais).
No ponto em que estamos,
temos dois caminhos:
O do senso comum, que é
reconhecer que a língua portuguesa admite variantes, nos diferentes países onde
é usada, o que só a enriquece. Não pode haver qualquer hierarquia entre os
países lusófonos, nem entre as suas variantes linguísticas: Nenhum país é dono
da língua, e nenhum é inquilino. Vamos deixar a língua evoluir naturalmente, a
partir de dentro e não por decretos, porque ela é um organismo vivo, e cada
país a usa a seu modo, como bem entende e quer, porque ela é sua e lhe pertence
por direito próprio. Nenhum país tem o direito de policiar ou fiscalizar o uso
da língua em qualquer outro país lusófono. O português não é uniformizável, qualquer
acordo é um contra-senso. Mesmo que fosse possível «acordar» e «simplificar», o
resultado seria imensamente empobrecedor.
Ou entendemos isto e
desistimos de acordos, ou vamos persistir por muitas décadas neste processo
delirante de acordos impossíveis – um acordo ortográfico falhado atrás de
outro, seguido de um já anunciado acordo de vocabulário que irá ser igualmente
falhado, e depois um acordo de sintaxe falhado, etc. etc. – ... até bater na
parede de um imenso Desacordo final, que deixará profundo desgaste e feridas a
todos os níveis, entre países que sempre souberam entender-se e conviver,
respeitando e valorizando as suas diferenças.
Deixo ainda uma breve nota
de carácter prático: certamente que é útil a existência de Vocabulários e
Dicionários que abranjam as variantes usadas nos diversos países. Mas apenas
como instrumentos de informação e de consulta, onde se encontrem respostas a
perguntas como: em que variantes da língua se escreve húmido ou úmido, ou o que
significam palavras como xiluva, caxinde, imbandas, quizumba, tambarina,
cachupa, kebur, ipê etc. Mas considero que os Vocabulários e os Dicionários só
fazem sentido sem qualquer valor normativo, cada país tendo direito exclusivo à
sua variante da língua, sem imposições ou interferências de outro país.