terça-feira, 19 de março de 2013

De acordo em acordo até ao
desacordo final?


Teolinda Gersão
O Acordo Ortográfico foi um processo infeliz, tratado nas costas da população dos países lusófonos, como se a língua fosse propriedade de um grupo de linguistas e os Governos tivessem legitimidade para mudar por decreto uma língua que não é propriedade sua, mas do país e dos cidadãos.

O percurso errático do Acordo Ortográfico arrasta-se há 23 anos (ou melhor, há 38, porque começou a ser pensado em 1975) e ainda não está legalmente em vigor, porque as populações dos vários países lhe resistem e porque, quando se tentou impô-lo pela força de um decreto, o resultado foi o caos.

O que faltará acontecer para que os sucessivos Governos reconheçam que pretendem a quadratura do círculo e que estas tentativas pura e simplesmente não funcionam?

Recentemente a Presidente Dilma adiou para 2016 a entrada em vigor do Acordo Ortográfico no Brasil, e, a acreditar nos jornais, tomou essa decisão unilateralmente, sem consultar os seus parceiros.

Pretende-se vender-nos a ideia patética de que o português de grafia uniformizada (vulgo, o «acordês») é a língua do poder e dos negócios.

Seguindo o «acordês» todos seríamos, a reboque do Brasil, grandes potências emergentes, a caminho de um mundo magnífico de poder e riqueza, partilhado por 240 milhões de falantes. Será que não percebemos a irracionalidade desta ideia?

A verdade é que o Brasil – ele sim – é uma grande potência emergente, o que nos alegra porque também nós o amamos. Mas Portugal, e outros pequenos países lusófonos, jamais serão grandes potências ou terão o peso do Brasil.

Esse peso não é partilhável, a nível nenhum.

Manter em cada país a sua variante da língua é uma marca de identidade e um património, que está acima do poder de qualquer Governo. Porque os Governos passam e mudam, mas as línguas não podem passar nem mudar como se fossem Governos.

É natural que o Brasil pretenda maior protagonismo liderando estas alterações linguísticas. Mas os restantes países lusófonos não têm nada a lucrar com isso, só têm a perder. E o Brasil, como grande potência emergente que já é, não precisa de nós, a não ser a nível simbólico. Porque, com Acordo Ortográfico ou sem Acordo Ortográfico, o Brasil vai sempre cuidar dos seus negócios e dos seus interesses, e só deles, o que é normal e legítimo: os países cuidam de si próprios, e tomáramos nós ter em Portugal quem defendesse os nossos interesses como Dilma defende os do Brasil.

Os laços e afectos só existem a nível das pessoas. A nível dos países, há apenas interesses. Não sentimos isso na pele, aqui na Europa? Estas mudanças linguísticas são apenas uma jogada política. Em todos os outros aspectos, são incongruentes:

Só dois exemplos: se o Acordo Ortográfico é fundamental para que nos entendamos, então por que razão no Brasil os livros portugueses, escritos segundo o «acordês», são traduzidos para o português do Brasil como se estivessem escritos numa língua estrangeira? Por que razão «mesa de cabeceira» passa a «criado mudo», «ficou pasmado» a «ficou pasmo», «foi apanhado pela polícia» a «foi pego pela polícia» etc. etc.?

Por que razão a nós nunca nos passou pela cabeça traduzir para o português europeu Guimarães Rosa, João Ubaldo Ribeiro, Ruben Fonseca ou qualquer outro autor?

Por que razão as livrarias portuguesas têm bancas de livros brasileiros e a literatura do Brasil nos é tão familiar, quando o inverso não se verifica?

Por que razão há cada vez MENOS estudos de literatura portuguesa nas universidades brasileiras, e cada vez MAIS estudos de literatura brasileira nas universidades portuguesas?

A resposta é simples: porque Portugal se abriu há muitas décadas ao Brasil, cujos autores circulam livremente entre nós, porque os sentimos como se também fossem «nossos», enquanto o Brasil sempre levantou barreiras alfandegárias intransponíveis aos livros portugueses, que lá chegam a preços proibitivos, e na maior parte dos casos nunca chegam.

A solução não está em «acordizar», mas em ter um intercâmbio maior e mais simétrico, em conhecer-nos melhor, valorizando as nossas diferenças.

Quanto ao «acordês» ser a língua dos negócios, «acção» e «facto», por exemplo, são mais compreensíveis para qualquer estrangeiro do que «ação» e «fato» (porque mais próximas de «action» e «fact» em inglês, língua de recurso que é, e continuará a ser, a língua franca dos negócios internacionais).

No ponto em que estamos, temos dois caminhos:

O do senso comum, que é reconhecer que a língua portuguesa admite variantes, nos diferentes países onde é usada, o que só a enriquece. Não pode haver qualquer hierarquia entre os países lusófonos, nem entre as suas variantes linguísticas: Nenhum país é dono da língua, e nenhum é inquilino. Vamos deixar a língua evoluir naturalmente, a partir de dentro e não por decretos, porque ela é um organismo vivo, e cada país a usa a seu modo, como bem entende e quer, porque ela é sua e lhe pertence por direito próprio. Nenhum país tem o direito de policiar ou fiscalizar o uso da língua em qualquer outro país lusófono. O português não é uniformizável, qualquer acordo é um contra-senso. Mesmo que fosse possível «acordar» e «simplificar», o resultado seria imensamente empobrecedor.

Ou entendemos isto e desistimos de acordos, ou vamos persistir por muitas décadas neste processo delirante de acordos impossíveis – um acordo ortográfico falhado atrás de outro, seguido de um já anunciado acordo de vocabulário que irá ser igualmente falhado, e depois um acordo de sintaxe falhado, etc. etc. – ... até bater na parede de um imenso Desacordo final, que deixará profundo desgaste e feridas a todos os níveis, entre países que sempre souberam entender-se e conviver, respeitando e valorizando as suas diferenças.

Deixo ainda uma breve nota de carácter prático: certamente que é útil a existência de Vocabulários e Dicionários que abranjam as variantes usadas nos diversos países. Mas apenas como instrumentos de informação e de consulta, onde se encontrem respostas a perguntas como: em que variantes da língua se escreve húmido ou úmido, ou o que significam palavras como xiluva, caxinde, imbandas, quizumba, tambarina, cachupa, kebur, ipê etc. Mas considero que os Vocabulários e os Dicionários só fazem sentido sem qualquer valor normativo, cada país tendo direito exclusivo à sua variante da língua, sem imposições ou interferências de outro país.



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