Inês Teotónio Pereira
A verdade é que o ónus não está só no Estado, ele
continua nas pessoas. O aborto não é um assunto encerrado. É um assunto
adormecido.
O assunto parece estar
resolvido: quem quer abortar aborta e quem não quer não aborta. As razões que
motivam as duas opções são várias, pessoais e intransmissíveis. Cada um sabe de
si. O Estado só tem de abrir as portas dos hospitais, pagar um subsídio e sair
de fininho deste tema fracturante. Há cerca de sete anos os portugueses
decidiram que a forma mais justa de lidar com o melindroso assunto é conceder
liberdade total às mães das crianças. Decidiu-se que o Estado não se deve meter
nesta relação íntima e muito menos substituir-se à mãe na decisão. E desde
então pouco se tem falado do assunto.
O debate há sete anos foi
aceso, intenso e apaixonado, e a emoção tomou conta da razão. À pergunta pouco
directa e concisa «Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da
gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas 10 primeiras semanas, em
estabelecimento de saúde legalmente autorizado?», os portugueses responderam
que concordam. Falou-se do início da vida, do embrião, do feto, dos bebés, da
gestação e em cada português encontrou-se um filósofo e um cientista. E o
dilema adensou-se: se há vida é crime, se não há vida não é. Há vida ou não há
vida? Uns dizem que sim, outros garantem que não. Mas havendo vida a anterior
lei que permitia o aborto em alguns casos também não é válida. Pois, mas cada
coisa a seu tempo. Havendo tantas dúvidas, não será melhor deixar que seja a
mãe a decidir se o embrião é vida ou não? Afinal o corpo e o embrião são dela.
Sendo uma questão de consciência, ficou resolvido que decide a mãe. E o pai,
tal como o Estado, não conta.
De seguida fomos todos para
casa de ombros caídos ou cantando vitória. Mas fomos todos para casa. Passaram
mais de sete anos e o tema já não é palpitante. De vez em quando alguém grita
(e bem) que é uma injustiça o Estado isentar as mães que abortam por opção de
pagarem as taxas moderadoras, mas pronto. Pormenores. Esta é uma causa
fracturante do passado.
Entretanto vamos sabendo dos
números: entre 2011 e 2013 registou-se uma média anual de 19 mil abortos a
pedido da mãe em que cerca de um quarto foram repetições. O porquê de tantos
abortos ninguém sabe e poucos querem saber. Sim, era melhor que os números não
fossem estes. Sim, era muito bom que ninguém decidisse interromper as
gravidezes e que em vez de 19 mil abortos pudéssemos engrossar os números da
natalidade em 19 mil. Mas o povo decidiu e a liberdade neste caso deixou de ser
um valor supremo e passou a ser um valor divino. O centro da questão passou a
ser a política de natalidade e família e talvez assim se dê a volta aos
números.
Mas a verdade é que o ónus não
está só no Estado; continua nas pessoas. O aborto não é um caso encerrado. É um
caso adormecido. Quando se delegou a decisão nas mães, virou-se ao mesmo tempo
as costas às que decidem abortar, encolheu-se os ombros às razões e tomou-se a
decisão mais neoliberal de todas. Conceitos como o bem comum, a justiça social
ou a igualdade de direitos foram arrumados na gaveta com o socialismo de Mário
Soares em tempos idos do FMI.
A Igreja é a única instituição que garante em
uníssono que um embrião é vida, mas ainda assim os portugueses, dos quais 81
por cento respondiam no censo de 2011 ser católicos, decidiram pela opção da
mulher. Passaram sete anos e a verdade é que a lei precisa de ajustamentos, as
mães precisam de aconselhamento antes de decidirem e de apoio concreto para
escolherem de facto em liberdade. A decisão de 2007 não isenta ninguém, pelo
contrário, responsabiliza-nos a todos. Sejam eles do sim ou do não, sejam eles
políticos ou eleitores. Neste tema não há culpas, há apenas deveres. Deveres
que não se esgotam no segredo das urnas ou no primeiro dia dos mandatos.