quarta-feira, 27 de maio de 2015


Família securitária


Inês Teotónio Pereira, Jornal i, 23 de Maio de 2015

Ao fim de alguns anos a montar esta rede, posso dizer com orgulho que os meus serviços secretos não envergonhariam qualquer país da antiga Cortina de Ferro.

Eu sou daquelas mães que proíbe os filhos de fazerem imensas coisas. Sou uma espécie de mãe securitária. Chego mesmo a ter uma rede de informadores, dentro da minha própria casa, ao estilo da Stasi, e cultivo a política do bufo. Ou seja, todos os meus filhos estão autorizados a fazer queixinhas uns dos outros, a denunciarem situações de injustiça e a alertarem os seus progenitores quando outro ou outros transgridem as regras.

Por exemplo, quando alguém não puxa o autoclismo, têm todos a obrigação de denunciar o prevaricador de forma que ele possa ser devidamente sancionado; do mesmo modo, sempre que um mais forte bate noutro mais fraco, com ou sem razão, também deve ser denunciado.

Também recorro muitas vezes a esta rede de bufos para estar a par da vida de cada um dos meus filhos. Com quem eles se dão na escola, se andam a estudar ou não, se andam tristes, se se queixam de mim, etc. A única coisa que não permito é que eles contem segredos que lhes foram confiados. Mas ainda depende: se o segredo prejudicar alguém, deve ser tornado público.

Ao fim de alguns anos a montar esta rede, posso dizer com orgulho que os meus serviços secretos não envergonhariam qualquer país da antiga Cortina de Ferro. Aliás, suspeito mesmo que o Muro não teria caído se todos os profissionais dos serviços secretos desses países trabalhassem tão bem quanto os meus filhos.

Esta minha rede é fundamental para fazer cumprir a lista detalhada de coisas que eles não podem fazer e de obrigações que eles têm de cumprir. Pois, como eu tenho filhos a mais e tempo a menos, preciso de ajuda para a devida monitorização.

Só para dar alguns exemplos, correndo o perigo de ser exaustiva, em minha casa é proibido: os mais velhos baterem nos mais novos, comer na sala, comer fora das refeições qualquer coisa que não seja leite ou fruta, ver televisão se alguém estiver a estudar (a não ser o canal Babyfirst), andarem descalços, jogar futebol na sala ou na varanda, terem os quartos desarrumados (que é como quem diz, não haver coisas no chão), ver o «Dead Man Walking» (só é permitido a partir dos 16 anos), jogar videogames de guerra e de cabeças a saltar se os mais novos estiverem a assistir, ligar para telemóveis do telefone de casa ou fazer o bebé gritar.


Ora, é fácil perceber que, sem bufos, é impossível fazer cumprir todas estas regras e mais outras tantas que não me dei ao trabalho de nomear.

É claro que estou consciente, como qualquer ditador minimamente competente deve estar, de que, muitas vezes, os meus filhos conspiram contra mim e organizam-se de forma a conseguir proteger-se uns aos outros em nome de uma qualquer prevaricação. E, muitas vezes, conseguem.

Nestes casos, eu trato de aliviar a tensão para que não aconteça uma revolução e cedo numa ou noutra regra – não tanto quanto Gorbachov, mas vou cedendo. E é assim que tenho conseguido que a casa não nos caia em cima e que os meus filhos não sejam obesos.

Mas a verdade é que não consigo mais do que isto. As minhas regras, a minha gestão familiar securitária servem apenas para que consigamos todos viver uns com os outros com alguma harmonia. Mas pouco mais. Tudo o resto, ou seja, a educação deles, vai muito para além das regras. O que nos une verdadeiramente, aquilo que nos transforma, de facto, numa família são os valores que partilhamos e que transmitimos uns aos outros. Só eles farão dos meus filhos bons cidadãos.

Quando casos como os desta semana de violência são tornados públicos, lembro-me sempre das minhas regras e de como elas são tão insignificantes ao pé dos valores que tento transmitir aos meus filhos. É que, em minha casa tal como no país, não há regras ou leis que nos valham se não existirem valores. E este é um desafio das famílias, não do Estado ou dessa entidade abstracta que é a sociedade.






Os dois fins do casamento


Michel Schooyansprofessor emérito da universidade de Lovaina, Bélgica

A segunda sessão do Sínodo sobre a família está próxima. Por ocasião dessa sessão serão rediscutidas três questões entrelaçadas: a união conjugal, o casamento e a família. Chegamos de facto a uma época da história da humanidade na qual, sem dúvida pela primeira vez, assistimos a um questionamento radical do casamento e da família. O alvo visado é o casamento e a família, com a sua dupla finalidade: o fim unitivo e o fim procriativo da união do homem e da mulher. A sua destruição desemboca na desagregação de toda a sociedade humana. É toda a família humana que é agora atacada, abalada, desnaturada pela acção de correntes ideológicas hostis.

Fabricar crianças?

A mais evidente dessas correntes complexas é a corrente hedonista que, na união conjugal, separa o fim unitivo do fim procriativo.

Por um lado, essa corrente exalta unilateralmente certos modos de acção e de comportamentos unitivos no casal, excluindo os comportamentos procriativos. A dimensão unitiva insiste no prazer e no individualismo hedonista e utilitarista. Vejam o que acontece com a contracepção. Não há mais abertura ao outro, não há mais reconhecimento da identidade do outro, da diferença que me distingue do outro. Cada um quer fazer aquilo que tem vontade de fazer. É o recuo identitário do mesmo sobre ele-mesmo: a contracepção tranca a relação com o outro.

Por outro lado, a dissociação, a separação entre os dois fins do casamento, escancara a porta à exaltação unilateral da finalidade procreativa, excluindo os efeitos unitivos. Considera-se então que suscitar a vida é uma questão de técnicas e que o enlace amoroso entre homem e mulher não tem nada a ver com isso.

Esses comportamentos unitivos e essas técnicas procrativas podem eventualmente ser controlados pelos poderes públicos. No limite, corremos o risco de nos encontrarmos numa sociedade onde não haverá lugar para um amor responsável. Se for o caso, os pais serão despojados de toda a autoridade, de todo o direito e de todo o dever diante das suas crianças. Porque não poderiam estas serem confiadas à educação, a qual aliás os poderes públicos se arrogam do monopólio?

A dissolução voluntarista dos dois fins da união conjugal é o ponto focal tocado em 1968 pela encíclica Humanae vitae (ver o número 12), pela exortação sinodal Familiaris consortio (1981) e por numerosos documentos magisteriais entre os quais a instrução Donum vitae (1987) e o estudo Família e procriação humana (2006). Se chegarmos a separar os dois fins da união conjugal, e do casamento que sela essa união, tudo pode resultar dessa dissociação provocada e radical.

Uma vez que exaltamos unicamente o fim unitivo, rapidamente chegamos a toda a espécie de práticas sexuais: homossexualismo, lesbianismo, fornicação, etc.  Não há mais lugar para a fidelidade, pois o que importa unicamente é o prazer, o interesse de cada indivíduo. Esse homem não é mais uma pessoa, um ser capaz de se abrir livremente a uma outra pessoa; é um indivíduo que busca o seu próprio gozo.

Se ao contrário se exalta unicamente o fim procriativo, chega-se a outras consequências, entre as quais, por exemplo, a procriação medicamente assistida, a gestação por terceiros, a tecnização da transmissão da vida a ponto de chegarmos à modificação genética do ser humano. O homem não se constrói mais num lar de amor. Não há mais maternidade, nem paternidade; por conseguinte, não há mais filiação nem consanguinidade. Com a chegada do anunciado útero artificial, dentro de pouco tempo não será mais necessário que a mulher abrigue uma criança no seu seio.

Todos esses processos são evidentemente o resultado de experimentações longas e complexas. Os abortos tornam-se «necessários» para resolver os «insucessos». Um exemplo de insucesso? A intolerável chegada de um ser que não se quer, precisamente em nome da exaltação unilateral do fim unitivo. Assim, os embriões produzidos in vitro e depois implantados serão seguidos de perto durante a sua gestação. Se anomalias forem reveladas, serão abortados. Lembremos aqui que os casos em que se assinalam anomalias são mais frequentes nas fecundações in vitro do que nos casos de fecundações naturais. Por outro lado, um número excedente de embriões é especialmente «inevitável» para a experimentação com células-tronco embrionárias.

Sob a pressão das ideologias hedonistas, as crianças são geradas proporcionalmente aos prazeres dos parceiros, às necessidades da sociedade, tais como estas são definidas pelos «sábios», por economistas, por demógrafos, por políticos ou por tecnocratas com forte impregnação ideológica. A selecção está inscrita nessa tecnização; está na lógica da ideologia liberal seleccionar: o produto deve ser impecável, senão será deitado fora. Conhecemos a selecção racial; aqui o que conta, é a selecção política, económica, a qualidade do produto fabricado. O homem e a mulher alienam-se: transferem para máquinas e para encubadeiras a fabricação de crianças. Eventualmente a criança, o produto fabricado, poderá ser comprado, vendido ou escolhido em catálogo.

Assim como deve haver o aborto «seguro», deverá também haver a procriação «segura». É preciso «desobrigar» a mulher da sua capacidade de procriar porque a procriação natural é muito arriscada. Actualmente, muitas mulheres não têm filhos porque a procriação é tida como não-segura.

Assim, abre-se o caminho ao prolongamento de uma vida de prazer e livre das constrições conjugais e parentais. A transmissão da vida não se fará mais segundo uma perspectiva humana; ela obedecerá a planeamentos ideológicos. Enfim, na outra ponta da vida, teremos em breve a eutanásia em massa.

O que está em jogo no trans-humanismo

Esses são alguns dos pontos em jogo e que podemos observar nos debates actuais sobre o trans-humanismo: as novas técnicas – asseguram-nos – oferecem aos homens meios que permitem dispor dos corpos e fabricar super-homens. Desculpem a modéstia! Resumindo, assistimos à impulsão de um novo eugenismo e mais precisamente à construção de novas espécies «humanas» modificadas geneticamente e hibridificadas com máquinas. Uma tal hibridização entre o corpo vivo e a matéria morta é irreversível. Assistimos à destruição irreversível da integridade do corpo humano. Decididamente, a cultura da morte  espalha-se por toda parte...

Hoje em dia, mesmo em certos estabelecimentos hospitalares que se dizem católicos, praticam-se intervenções tais como o aborto, as procriações medicamente assistidas, as pesquisas com embriões, sem esquecer a eutanásia, etc. Quantas vozes, no laicado, no clero e no episcopado, se erguem num convite a se reconsiderar essas práticas? Diante desse mutismo, é preciso fazer valer o carácter indissociável entre os fins da união conjugal e o casamento. Com efeito, é a separação entre os dois fins que escancara a porta aos múltiplos desvios que hoje conhecemos. Os efeitos perversos da separação entre os dois fins do casamento vão muitíssimo além da esfera íntima onde essa separação tem início. Aqueles que atacam a Humanae vitae, a Familiaris consortio, a Donum vitae e os outros documentos magisteriais devem ter pesquisado que, no ensinamento da Igreja não basta destacar porque é que a Igreja recusa a contracepção e o aborto, nem porque é que a Igreja recusa a ideologia do género; essa ideologia não é senão uma das metamorfoses da dissociação do que tratamos. É preciso então colocar em evidência que uma vez admitida a separação entre os dois fins da união conjugal, abrem-se sem nenhuma rede de segurança todas as possibilidades oferecidas pelas técnicas e asseguradas pelo direito.

Quanto àqueles que, na Igreja, batalham para que essa cisão seja admitida, devem saber que correm o risco de provocar um cisma do qual deverão prestar contas a Deus e aos homens.

O terror, ontem e hoje

A discussão aqui travada não diz respeito unicamente aos cristãos de hoje e aos seus adversários. As correntes individualistas que se encontram na origem dos desvios que acabámos de evocar, desenvolveram-se inicialmente na Inglaterra, sempre líder intelectual nessas matérias, depois nos Estados Unidos, estrategistas do eugenismo mundial e país onde os médicos fazem morrer, sem que isso suscite discussão. Em igual medida, essas correntes difundiram-se a partir da Alemanha. Recordemos ao menos que foi nesse país que se difundiram e foram postas em prática as ideologias celebrando o racismo e o eugenismo, bem como a eutanásia.

Ora, essas mesmas correntes desenvolveram-se sobretudo em França a partir do Século das Luzes. É a partir de França que se forma, se desenvolve e se exporta uma poderosa corrente exaltando o indivíduo, o «sujeito», a sua razão, a sua liberdade, o seu direito ao prazer, as suas paixões. A França tornou-se a portadora mundial da tocha da laicidade republicana. Segundo diferentes impostações, a religião revelada é rejeitada. O homem progride, garantem-nos, apoiando-se somente na sua razão e na sua experiência; deve-se dar lugar à religião civil ou ao ateísmo. As paixões devem estar ordenadas à maximização do leque de voluptuosidades. O direito ao prazer erótico, levado certas vezes ao paroxismo do direito à destruição, é reivindicado e confortado pela rejeição de Deus. Do seu calabouço, ao divino marquês não faltou audiência e conseguiu garantir a sua posteridade.

Ora, após ter-se matado Deus ou agindo como se Deus não existisse, torna-se difícil encontrar um fundamento ao direito. É essa uma das maiores dificuldades do iluminismo, versão francesa. Desde o século XVIII, uma fracção significativa e actuante da intelectualidade francesa esforçou-se, em nome da liberdade, de dar ao terror um lugar na vida pública. Com uma obstinação acachapante, os manuais de história politicamente correctos transmitem de geração em geração a vulgata revolucionária.

Não obstante, impõe-se uma revisão dessa vulgata, ainda que essa revisão seja perturbadora. Os media e a opinião pública recentemente ergueram-se, e com razão, face às decapitações e outros actos de barbárie ocorridos na área de influência do islão integrista. Porém, é desonesto ocultar, como se faz nas arengas politiqueiras e nos manuais escolares, que foram os senhores da guilhotina a guilhotinar em série e a exportar a sua técnica aprimorada. Esse desvio cruel observa-se ainda hoje. Orgulhosos da sua ascendência voltairiana, as forças da laicidade agitam como lúgubre troféu a marca de 200 000 abortos por ano em França. O terrorismo revolucionário instalou-se de modo duradouro, em nome da liberdade. Querendo ir muito além do necessário, a França não deixa passar a ocasião de se autoproclamar «Pátria dos Direitos do Homem», um erro histórico grosseiro mas útil à causa de um messianismo arrogante.

A questão do mal, hoje

Na actual situação, a questão do mal coloca-se como jamais se colocara antes. É verdade que há tentativas notáveis de se analisar o mal tal como se apresentou nas grandes ideologias totalitárias do século XX. Frequentemente se invocou uma perturbação da razão. Mas hoje, em nome de uma perversão da verdade, desde já desnorteada, somos confrontados com uma tentativa sem precedentes na história da humanidade: a de destruir a própria humanidade, de destruir a capacidade que o homem tem naturalmente: a capacidade de amar. Recusa de tomar consciência do plano de Deus para o homem! Essa destruição leva por fim à destruição do corpo do homem pela destruição irreversível da sua integridade genética. É o maior drama da história da humanidade.

Não há muito tempo, Hilary Clinton pediu à ONU que o direito ao aborto fosse proclamado à escala universal. Vejam a perversão que espreita o direito: como podemos reduzir um ser humano a um objecto do qual se pode dispor até à destruição?  Um ser humano é para ser acolhido, respeitado: não é objecto de um direito; os juristas dizem que ele não está disponível. Eu tenho direito de comprar pão, um automóvel ou uma casa. Mas não tenho direito, eu que sou um ser humano, de matar alguém de eliminar outro ser humano. Ora, a partir da dissociação entre os fins, não importa o que passa a ser não somente legalizável, mas até mesmo legal; o próprio direito se vê desnaturado. No torvelinho dos acontecimentos, a medicina é também pervertida, uma vez que em lugar de procurar curar, melhorar a saúde, suavizar os sofrimentos, consente em se colocar a serviço da morte, tanto antes quanto depois do nascimento. Na Bélgica, por ocasião do debate sobre a eutanásia de crianças (em 2014), legislou-se: a lei passou sem problemas; não houve senão alguns protestos, enquanto que, o que está em jogo em todos esses debates é o próprio futuro da humanidade.

Proteger a moral natural

Todas essas questões novas não podem ser resolvidas por uma casuística como esta aqui: «Em tal caso pode-se abortar, em tal caso não se pode; em tal caso  pode-se praticar eutanásia, em tal outro não». Limitamo-nos a decidir casos pontuais de consciência sem nos referirmos aos princípios fundamentais da moral. Essa casuística é de certo modo precursora da moral da situação. O que é preciso é ir verdadeiramente à origem do problema e reencontrar, na destruição dos fins do casamento, as raízes da acção de Satã, hoje, na história da humanidade e no coração dos homens.

Convém ainda acrescentar uma reflexão a propósito da casuística que acabámos de mencionar. A Igreja encontra-se numa situação espantosa. Altos prelados, vindos sobretudo das nações opulentas, empenham-se em introduzir modificações na moral cristã referente aos divorciados-recasados e a outras situações problemáticas das quais algumas delas foram citadas aqui. Esses Guardiões da Fé não deveriam contudo perder de vista que o problema fundamental colocado pela destruição dos dois fins do casamento é um problema de moral natural.  É no plano natural que o homem e a mulher são chamados a unirem-se para testemunharem o afecto e para procriarem. É essa a realidade natural que o Senhor elevou à dignidade de um sacramento. Diante das potências que abalam actualmente a família, a Igreja deveria descobrir a sua vocação de ser a única instância à altura de salvar a sexualidade humana e a instituição natural do casamento e da família.  Não se trata apenas de salvar a moral cristã; é preciso salvar e proteger a moral natural. Não é possível que, por meio de procedimentos casuísticos capciosos, católicos de todos os estratos e de todas as idades contribuam para a destruição da moral natural.  Os grandes desvios surgiram quando certos intelectuais católicos começaram a dizer e a escrever: «Sinal verde para o aborto, para as uniões homossexuais, para a eutanásia, etc.». Ora, a partir do momento em que os católicos surfam essa onda fatal, contribuem para a destruição da instituição natural do casamento. É toda a comunidade humana que se vê cindida com essa nova «traição dos clérigos».

Vale a pena levantar aqui uma questão chave: o Magistério da Igreja é competente para modificar a moral natural? Uma redução da moral natural a uma moral puramente casuística leva certos teólogos e certos pastores a caucionarem a redução do direito fundado na natureza do homem. Por ocasião de um processo recente e muito divulgado pelos media, comentou-se repetidamente que o direito nada tinha a ver com a moral. A partir daí, não há direito senão o direito puramente positivo, originário da vontade isolada do legislador. Nesse último caso, não há mais direito que fosse inato ao homem pelo simples facto de ser homem. Não haveria senão os direitos definidos pelas instâncias politicas nacionais, internacionais e mundiais. É de se ter calafrios pensar que a generalização de um direito assim prenunciasse a instauração de uma sociedade «global», isto é mundial, teleguiada pela vontade dos mais fortes.

Resumindo, em vez de proteger a célula familiar da sua detonação, da sua fissura, o próprio direito coloca-se ao serviço da destruição da pessoa e da família. O papel do direito não é, ao contrário, proteger o núcleo conjugal, familiar e os frutos que dele decorrem, a saber, os filhos?

A recepção dos ensinamentos pontificais

O beato Paulo VI conheceu incompreensão e rejeição quando da publicação da encíclica Humanae vitae, encíclica que o fez sofrer, antes como depois do seu aparecimento. Dissera: «Vocês ainda me agradecerão por ter publicado esse documento».

São João Paulo II retomou esse ímpeto profético com seu engajamento em favor dos mais pobres e dos mais vulneráveis. Daí os seus repetidos apelos para que se pusesse um fim à banalização do aborto e à sua legalização. Nas intervenções posteriores de João Paulo II, foram examinadas outras questões cruciais. O Papa aborda ali, entre outras, as politicas do controle de nascimentos, especialmente nos países do terceiro mundo. Menciona também o aumento da esperança de vida do nascituro, principal causa do envelhecimento da população, envelhecimento que por sua vez, é invocado com vistas à legalização da eutanásia. Estamos portanto diante de um conjunto de problemas emaranhados aos quais as pessoas estão mais e mais atentas, ainda que estejam frequentemente pouco ou mal informadas, como mostram as discussões nos países ocidentais sobre as adequações a serem feitas na idade da reforma.

São João Paulo II exprimiu no rosto, no seu comportamento, a sua acção, os seus discursos, pelas suas encíclicas, por toda a sua maneira de ser que foi um mediador entre Deus e os homens. Em todos os lugares que foi no mundo, foi percebido como um enviado de Deus, mesmo entre os não-cristãos. Era um ícone vivo de Deus entre os homens. Deu aos homens a confiança necessária para que as pessoas se engajassem no serviço à vida e à família. São João Paulo II é o Papa que terá salvado a família, que terá salvado incontáveis vidas humanas com a potência da sua palavra. Desse ponto de vista, São João Paulo II aparece no primeiro plano das figuras carismáticas da Igreja contemporânea. Tinha efectivamente um contacto extraordinário com os homens, com as mulheres, e com as crianças de todos os meios. Mas aquilo que mais nos retém a atenção, é a sua determinação em salvar a vida e a família. Ele mobilizou as pessoas e os casais suscitando-lhes a audácia de se lançarem à aventura de serem pais, de acolherem a vida, de serem profissionais da ternura.

Será preciso que a Igreja retorne à Humanae Vitae de Paulo VI, bem como aos ensinamentos de João Paulo II e de Bento XVI sobre essas questões. O Papa Francisco permanece na trilha dos seus predecessores cada vez que sublinha a coincidência entre o Evangelho do amor e o Evangelho da alegria. Será preciso fortalecer o peso magisterial  de todo esse ensinamento, colocar em relevo a sua coerência  e proteger esse tesouro contra os predadores.

A conversão do coração

Não é pretendendo modificar o homem ou «melhorá-lo» por meio de técnicas arriscadas que se irão elevar os indicadores de justiça, de bem estar e de felicidade. As técnicas actualmente disponíveis lançam-se sem nenhum rumo; cedem o leme ao sonho. A utopia está em vias de assumir o comando do mundo mas não resultará em nada. Ela necessita da ideologia para convencer o homem da «legitimidade» da transgressão. As utopias cientificistas ou politicas de hoje não fazem senão espelhar a enésima sociedade ideal. Pretendem que para alcançar esse fim seja preciso modificar o homem ou reconstruí-lo. Sem essa modificação do homem, a construção da sociedade ideal estará bloqueada. Segundo essa lógica, os cristãos serão desprezíveis se recusarem aderir a esse projecto; devem ser perseguidos.

Ora, o homem de hoje deve libertar-se dessas armadilhas ideológicas que o confinam em novas escravidões. O que é preciso é restaurar o respeito devido ao homem. É preciso chamar o homem à conversão do coração para que possa abrir-se aos valores verdadeiros e engajar-se no seu serviço. Essa restauração do homem implica uma etapa preliminar: é preciso desmascarar as armadilhas prometeicas e tornar manifesto o peso do pecado que elas injectam nas nossas sociedades. Será preciso também adoptar uma visão prospectiva da sociedade e da biosfera, pois as duas, homem e biosfera, só serão salvas juntas.

Essa reapropriação do homem por ele mesmo permite que se tomem hoje medidas em função da sociedade que se quer construir. É o que nos ensinou a prospectiva. Cristã ou não, a moral não se pode mais satisfazer com a previsão que vê no futuro uma simples extrapolação do presente. De facto, no caso da previsão, o futuro previsto está determinado; ele escapa à responsabilidade moral. A prospectiva por sua vez, considera que esse futuro a  construir-se não é o objecto de um sonho; é ele que determina o presente e faz da decisão um acto moralmente responsável.

Levar a esperança ao mundo

Dessas novas escravidões o homem não sairá se não voltar a ser senhor de si, reafirmando a sua capacidade de discernir e decidir. Prever o futuro como mera extrapolação do presente, como o seu prolongamento, não é de modo nenhum suficiente para dar sentido à acção. Uma concepção previsionista do futuro não abre espaço algum à decisão livre e responsável, pois o futuro já está ali determinado. A moral da responsabilidade convida-nos a agir no mundo de hoje tendo em vista um mundo melhor que desejamos preparar para os jovens de hoje. Toda a moral referente à sexualidade humana e à família deve dirigir a sua reflexão a longo prazo. O futuro que preparamos para as gerações que virão depende da qualidade das decisões que tomamos – ou não tomamos – hoje. Os pobres e as crianças são nossos senhores. Devemos preocuparmo-nos com eles. Somos por eles responsáveis. Devem poder segurar a mão que lhes estendemos para levá-los da morte à vida. A prospectiva deixa um amplo espaço de livre decisão e assim de abertura aos valores hierarquizados. Ela mobiliza a vontade; convida ao engajamento; comove o coração diante de todas as misérias sobre as quais o homem, se quiser, pode agir.

Certamente todos os temas abordados pelo Sínodo da Família merecem ser discutidos. Mas a Igreja corre o risco de se perder se exaltar as previsões delirantes em vez de oferecer à sociedade humana a mensagem de esperança que o Senhor lhe confiou e que ela tem, por mandato, de levar às Nações.


Tradução: Rui A.C. Costa





domingo, 24 de maio de 2015


Governo volta a admitir despesas

de saúde com IVA a 23% no IRS 2015


Na sequência da reforma do IRS e das confusões produzidas pela declaração de facturas como a polémica ontem descrita em «Registar despesas de saúde com IVA diferente na mesma factura pode impedir acesso a benefício fiscal?», o governo vai repor a dedução para efeitos de benefício fiscal das despesas de saúde tributadas à taxa de IVA de 23% desde que suportadas por receita médica.

É isso que se lê no Jornal de Negócios devendo ter efeitos na entrega da declaração de IRS em 2016. Se a reposição se fizer nos moldes em vigor até 2015 a dedução máxima associada ao IVA a 23% será de €65.