segunda-feira, 23 de abril de 2018

Quero ser médica e não homicida


Andreia Cunha dos Santos Silva, Observador, 13 de Abril de 2018

Como médica portuguesa, formada na Bélgica e na Suíça a trabalhar em Bruxelas, não poderia deixar de enviar o meu testemunho do que se passa em dois países onde a morte assistida já foi despenalizada.

As discussões sobre o fim de vida, a eutanásia e o suicídio assistido em Portugal nos últimos dois anos, levaram três partidos da Assembleia da República a apresentarem anteprojectos de lei a favor da despenalização da morte provocada (estes anteprojectos falam de morte provocada e portanto não natural; o termo de morte assistida leva a incompreensões pois uma morte natural, com acompanhamento médico como no caso dos cuidados paliativos, é uma morte assistida) e tem contribuído para que sejam publicados diversos artigos de opinião sobre a matéria. Como médica portuguesa, formada na Bélgica e na Suíça, e actualmente a trabalhar em Bruxelas, não poderia deixar de enviar o meu testemunho do que é formar-se e trabalhar em dois países europeus onde a despenalização da morte provocada por vontade do doente, já existe. Querendo com este texto mostrar um pouco da realidade da medicina e da sociedade nestes países, exporei alguns casos vividos em primeira pessoa durante a minha prática clínica. Na minha trajectória profissional, muitas foram as situações em que pacientes me pediram para pôr fim às suas vidas, quase sempre sem se encontrarem nas condições previstas por lei para o fazerem; também fui confrontada com famílias que sofriam pela doença dos seus familiares, e que me pediram a eutanásia destes.

A primeira lei permitindo a despenalização da eutanásia na Bélgica, data de 2002 e permitia que a eutanásia pudesse ser realizada sob certas condições: doente adulto, com doença incurável ou condição clínica acidental irreversível, em sofrimento físico e/ou psíquico constante, insuportável e incontrolável. Em 2014, no que se chama actualmente em bioética a «rampa deslizante» belga, a lei foi alargada aos menores de acederem à eutanásia se fizerem um pedido de eutanásia reiterado, que se encontrem numa situação de sofrimento insuportável devido a uma patologia incurável, e com o acordo dos pais.

Como interna e depois como médica, tive pedidos de eutanásias de diversos pacientes e também de algumas famílias. Durante a minha especialização, segui um paciente que se encontrava em estado muito avançado da sua patologia oncológica. Muito rapidamente, esse senhor acabou por entrar num coma irreversível, e a sua agonia (em medicina, define o período que precede a morte, que na grande maioria dos casos é sem dor) durou pelo menos 3 dias, questionando-me a mim como a toda a equipa quanto ao sentido daquela situação. Quero ressalvar que não houve nenhuma obstinação terapêutica nem nenhuma dor que não fosse correctamente tratada. Todavia, e visto que o paciente já não se encontrava consciente, mas que a sua agonia era considerada por alguns colegas como longa demais, houve quem dissesse que era necessário ajudar aquele paciente a falecer. Sabendo muito bem o que acontece em tantos hospitais belgas, não fiquei espantada com a proposta. A intenção existia, mas acabou por não ser posta em prática, porque o paciente acabaria por falecer de morte natural, em presença das enfermeiras que cuidavam dele.

Poucos anos mais tarde, tratei de um paciente que tinha feito um pedido de eutanásia por sofrimento insuportável e que tinha sido avaliado por dois colegas médicos. No dia em que aquele senhor ia escolher a data para a sua eutanásia, ele começou por ficar desorientado e confuso, não podendo dar a conhecer a data que tinha escolhido. Eu chego durante esse período naquele serviço hospitalar e torno-me a sua médica responsável. Passados poucos dias, o doente deixa de estar confuso e a pouco e pouco retomo a discussão com ele, para saber se o processo de eutanásia devia continuar. Ao perguntar-lhe se queria manter o pedido de eutanásia, aquele doente confessou-me não querer morrer, mas que as muitas dores que sentia lhe eram insuportáveis e por isso pedia a morte. Tenho que admitir que não esperava esta resposta, sobretudo porque partia do principio que tudo tinha sido feito anteriormente para atenuar as dores. Acabei por me aperceber que o seu tratamento não estava ajustado à intensidade dos sintomas, e depois da adaptação terapêutica, o paciente acabou por retirar o seu pedido de eutanásia e voltar para casa com cuidados paliativos a domicílio.

Estes episódios que agora relato, entre tantos, demonstram claramente o quanto é perigoso despenalizar práticas que provocam a morte dos cidadãos, e quanto é utópico querer controlar estas mesmas práticas, seja pelas autoridades seja por comissões externas. As recentes polémicas da Comissão de Controlo da eutanásia na Bélgica são disso prova[1]. A justificação segundo a qual a despenalização da morte provocada impedirá eutanásias clandestinas e ilegais é falsa. Sabemos na Bélgica, na Holanda e na Suíça, que não é assim. Os promotores da eutanásia na Bélgica dizem em alto e bom som que o número de eutanásias não pedidas (e, portanto, fora do quadro da lei) ultrapassa as 1000 mortes por ano. No artigo que escreveu a um jornal generalista belga em 2014, um professor de cuidados intensivos e antigo presidente da Sociedade belga de cuidados intensivos defendia a possibilidade de se realizarem eutanásias sem pedido do paciente, com a justificação da medíocre «qualidade de vida» de tantos pacientes nos cuidados intensivos, pedindo mais poder para o médico definir quem merece viver e quem merece morrer, coisa que ele admite já acontecer nos hospitais belgas[2].

Quem conhece bem o tema da eutanásia e do suicídio assistido, não se espanta com estas derivas. Elas provêm de uma concepção puramente utilitarista do fim de vida, que se esconde por detrás da noção de «qualidade de vida», que é completamente indefinível porque é subjectiva e própria a cada pessoa. Para além de que estas leis, mesmo que excessivamente restritivas, fazem crer à sociedade e aos médicos, a pouco e pouco, que a morte provocada é um direito do cidadão, não vai contra os fundamentos da nossa sociedade e é simplesmente mais uma proposta terapêutica como qualquer outra.

Não obstante estas situações graves às quais fui confrontada durante a minha carreira até hoje, pude trabalhar com equipas de cuidados paliativos. Pude aprender com elas como enfrentar o fim de vida de uma pessoa, como cuidar médica – e humanamente destes doentes e das suas famílias. O seu aparecimento na medicina vem em grande parte da interdição de matar, que é constitutiva da medicina. Isso levou tantos profissionais de saúde a investigar, a procurar o melhor que a medicina pode fazer para atenuar a dor física e o sofrimento moral de tantos doentes. Todavia, numa visão utilitária do paciente e da medicina, querem-nos fazer crer que a resposta mais humana que podemos dar a um outro ser humano que sofre, é a morte, sobretudo se ele a pedir. Parece-me por isso muito fácil e certamente menos caro para o governante, inscrever uma lei no Diário da República a permitir a morte provocada dos seus cidadãos, do que a reflectir, instituir e pagar por uma rede eficaz de cuidados paliativos à disposição dos cidadãos e dos profissionais de saúde. Esta quase ausência no panorama do SNS é inadmissível, quando os cuidados paliativos foram desenvolvidos há décadas e são propostos pela Organização Mundial da Saúde como a única forma de cuidar e de acompanhar os doentes em fim de vida. Justificar por isso a eutanásia e o suicídio assistido com o «morrer mal», quando pouco foi feito para permitir um acompanhamento adequado em fim da vida, é simplesmente insultuoso para os portugueses e para os profissionais de saúde. Eu não quero ser homicida; eu quero ser médica.

Pensar por isso que Portugal não cairá nas mesmas derivas que já existem nos países onde a eutanásia e o suicídio assistido foram despenalizados, é pura inconsciência da parte dos nossos governantes. Abrir a porta a estas práticas em Portugal, mesmo nas condições mais restritivas que sejam, já será o início da rampa deslizante que obrigará mais tarde a mesma porta a ser escancarada em nome de um «direito a morrer» para todos que o pedirem. Os promotores da morte «assistida» sabem-no muito bem.

Só existem por isso duas soluções para combater a má morte e ambas estão ao alcance do Estado e da sociedade: obrigar o Estado a investir num sistema nacional de cuidados paliativos eficaz assim como na formação de todos os profissionais de saúde para a sua prática; e incentivar social – e economicamente o fortalecimento dos laços familiares e de proximidade, de maneira a que as famílias em conjunto com as equipas médicas de cuidados paliativos, possam acompanhar os seus doentes, educando assim as gerações seguintes ao cuidado de quem está doente e que sofre. Isto para que ninguém possa, um dia, pedir a morte e aceder a ela por estar só, por sofrer sem ter os cuidados médicos justos ou ainda por se sentir um fardo para a sua família e para a sociedade, que ela própria ajudou a manter com o seu trabalho e com a sua participação enquanto cidadã.

Bruxelas, 12 de Abril de 2018

Médica especialista em Clínica Geral e Familiar


[1] «Malaise au sein de la commission de contrôle de l’euthanasie: un médecin a mis fin aux jours d’une patiente sans respecter la procédure légale» – RTL Info du 6 Janvier 2018.

[2] Jean-Louis Vincent: «Maintenons la santé mais pas la vie à tout prix»; Journal LeSoir de 25 de Feveiro de 2014.