segunda-feira, 5 de janeiro de 2015


O risco dos castigos


Inês Teotónio Pereira em ionline

Aquela tarde em que eu e os meus filhos ficámos de castigo foi prova de que fazer a vez das consolas, da televisão e dos computadores não é fácil. Tira-nos dos sofás para sermos pais.

Como as férias são longas e a paciência não, as relações entre pais e filhos azedam com frequência e facilidade durante esta quadra natalícia de paz, amor e harmonia. Não é fácil. As crianças estão excitadas com os presentes, com os primos e com o excesso de açúcar. Os pais estão falidos com os presentes, cansados de tudo e enjoados devido ao excesso de açúcar.


Não é fácil controlar a paciência. E foi por isso que, no outro dia, os meus filhos ficaram todos de castigo. Um castigo à antiga, coisa séria, tradicional e conservadora: durante um dia não puderam sair de casa, ver televisão, jogar consola ou mexer nos telemóveis e computador. Eles estranharam: «Já fizemos muito pior e não ficámos de castigo», reclamou um deles. Não cedemos. Os primos não vieram nesse dia, a televisão manteve-se silenciosa e tudo o que precisa de electricidade adormeceu. Restava-lhes ler, falar uns com os outros, dormir, estudar ou recorrer aos jogos de tabuleiro que vão acumulando o pó de uma década. Fizeram de tudo um pouco, mas passaram a maior parte da tarde a conquistar o mundo no Risco. Claro que eu também. Claro que este castigo me saiu caro porque me arrastou do sofá e de uma sessão da tarde para uma mesa de jantar com o objectivo de entreter cinco crianças que estão tão habituadas aos jogos de tabuleiro como ao hóquei no gelo. Claro que ganhei e, por isso, tive de jogar mais um e perder.

No dia seguinte, as crianças acordaram novamente livres. As portas de casa voltaram a abrir-se e todos os aparelhos electrónicos ganharam novamente vida. Mas a criançada voltou a sentar-se à mesa para jogar ao Risco. Do Risco passaram ao Cluedo e agora não há bola que os tire de casa nem filme que os distraia do mistério. Porquê? «Porque assim a mãe brinca connosco», dizia um deles. Apanhada.

Nós, pais e adultos em geral, gostamos muito de dizer que as crianças de hoje não sabem brincar e que não lêem, que são viciadas em televisão, que não socializam, que não têm imaginação e que são adversas a um pensamento mais elaborado porque os jogos que jogam e os programas que vêem transformaram-nos em autómatos com o cérebro atrofiado. Mas ao mesmo tempo que achamos, convictamente, tudo isto, damos-lhes telemóveis, tablets, 200 canais à escolha e consolas. E quando lhes damos um livro, procuramos a versão em filme para lhes facilitar a compreensão da leitura. Também numa viagem de carro que dure mais de meia hora, levamos as consolas para elas se entreterem em silêncio em vez de cantarem ou de passarem o tempo a repetir as matrículas. E no fim agradecemos a todos os génios da informática pelas tardes que passámos em silêncio, pelas viagens calmas e serenas e pelos fins-de-semana harmoniosos em que a criançada está toda agarrada às novas e silenciosas tecnologias em vez de estar aos gritos, a fazer perguntas, birras ou correrias.

Não ter nada disto dá trabalho. Aquela tarde em que eu e os meus filhos ficámos de castigo foi prova disso. Fazer a vez das consolas, da televisão e dos computadores não é fácil. Tira-nos dos sofás, dos nossos computadores e das nossas televisões para sermos pais. Para ouvirmos e brincarmos com os nossos filhos, para os ensinar a jogar em vez de ser ao contrário – porque, se das consolas percebem eles, do Risco ou do Monopólio sabemos nós. O novo mundo não está mal e as tecnologias não são o demo, o que está mal é a falta de opções que insistentemente damos aos nossos filhos: se eles soubessem que existe vida para além dos computadores e das consolas, de certeza que as listas de Natal seriam outras. Mas como os nossos fins-de-semana seriam mais barulhentos e trabalhosos, o melhor é deixar as coisas como estão e não se fala mais nisto.