Helena Matos, Observador, 19 de Março de 2015
Não faço ideia se existe ou não lista VIP no fisco mas se não existe devia existir: o Estado obriga-nos a entregar aos serviços fiscais informações que o mesmo Estado nos garante serem de natureza privada. Logo o mínimo que o mesmo Estado tem de assegurar é que essas informações não serão divulgadas. Ter em conta que as informações de alguns cidadãos poderão ser alvo de um maior interesse é elementar.
Podemos discutir quem está nessa lista, como é ela elaborada, questionar em que medida os dados de quem lá não está ficam bem ou mal protegidos mas a partir do momento em que se garante que determinados dados na posse do Estado são da esfera privada cabe ao Estado garantir que assim permanecem.
Aliás
seria interessantíssimo discutirmos as dificuldades e os falsos entraves que o
fisco, as polícias, os tribunais, a Comissão de Acesso aos Documentos
Administrativos, as autarquias… levantam para impedir o acesso às informações
que obrigatoriamente têm de ser facultadas. Não talvez por acaso, nesta matéria
não há coincidências, assistimos em simultâneo ao proliferar de um jornalismo
cada vez mais dependente de fugas de informação.
E em
boa parte é disso, da gestão das fugas de informação, que se trata nesta
polémica: uma corporação habituada a gerir a divulgação dos dados fiscais de
alguns cidadãos ficou muito irritada porque percebeu que essa prática, que é
também uma forma de poder, estava a findar e contra-atacou denunciando a
existência de uma lista, logo denominada VIP, da qual constam pessoas cujos
dados ficais serão objecto de maior protecção perante acessos indevidos. Como
não podia deixar de ser a lista VIP tornou-se num problema político em boa
parte por erro do Governo.
A
forma desatinada (e, na minha opinião, desleal para com os funcionários da
administração fiscal) como o Governo está a reagir a esta crise é bem
sintomática do complexo de não ser de esquerda misturada com o frenesi deste
ser ano de eleições que se apossou do executivo. E executivo algum em Portugal
está preparado para ser acusado do pecado capital da desigualdade. É dos
livros: mal a palavrinha desigualdade aparece no meio daquilo que pode
transformar-se numa polémica logo os acusados de desigualdade tratam de mostrar
que são ainda mais igualitários que os outros e, nesses momentos, vale tudo.
Até a apologia do igualitarismo.
Hoje é
o problema da igualdade perante o fisco, expressão por si mesma anedótica pois
a desproporção de poderes entre os cidadãos e a máquina fiscal chegou a níveis
tais que os cidadãos que outrora fomos se transformaram em contribuintes
constantemente em falta: há sempre uma taxazinha ou um imizinho para pagar. Ou,
na falta deles temos essa frota automóvel única no mundo que apenas existe para
o fisco português composta por automóveis entretanto passados a sucata mas que
na impossibilidade de provarmos não só que já não nos pertencem mas que na
verdade já nem existem continuam, fiscalmente falando, a circular e pagando o
respectivo IUC.
Mas voltemos
à desigualdade: o Estado não pode tratar de forma igual o que é diferente.
Existe uma maior probabilidade de que alguém tente aceder aos dados fiscais de
Cristiano Ronaldo do que aos de um jogador só conhecido no seu bairro. De igual
modo um titular de um cargo político tem por isso mesmo poderes e obrigações
diferentes dos demais cidadãos. Estes últimos, por exemplo, não depositam
declarações de interesses no Tribunal Constitucional, onde aliás podem ser
consultadas por qualquer cidadão. Ou, tendo nós constitucionalmente consagrado
o direito à segurança, sabemos que existem cidadãos aos quais o Estado garante
uma segurança diferenciada: alguns membros do governo em funções ou antigos
presidentes da República têm polícia à porta. Claro que isso é uma desigualdade
contudo não é por ser desigualdade que é condenável.
Prosseguindo
na senda da desigualdade: quantos de nós não gostaríamos de chegar e estacionar
à porta dos edifícios municipais ou ter direito a carro com motorista? Pois é,
mas não temos. Não duvidando eu dos abusos que se cometem nestas áreas
(particularmente por uns titulares desses cargos que em público abominam o
automóvel e nos mandam deslocar de bicicleta!) e defendendo que devia ser muito
maior o escrutínio sobre a extensão desses direitos, não contem comigo para
fazer a apologia do «acabemos já com estas desigualdades» a que se segue o
consensual «isto é uma pouca vergonha» que conduz ao inevitável «têm de rolar
cabeças». Às vezes rolam as melhores mas isso para o caso não interessa nada:
tem é de se mostrar à turba a cabeça que rolou.
Todos
sabem como começa este jogo do combate à desigualdade mas que muitos fazem de
conta que não sabem como acaba: oficialmente aquela iníqua desigualdade é dada
por extinta. Na prática institui-se nos bastidores uma desigualdade muito maior
só que deixa de ser mediaticamente mencionável. No caso da lista VIP que o
Governo diz que nunca existiu não é difícil antecipar o que aí vem: as fugas
cirúrgicas sobre dados fiscais vão continuar; os cidadãos comuns não ficam mais
protegidos pelo desaparecimento da lista VIP; aumenta o poder informal, logo
não questionável, de quem gere o que se sabe e de quem.