quinta-feira, 14 de março de 2019

Já te safaste hoje?


Laurinda Alves, Observador, 5 de Março de 2019

Foi assim que o verbo safar passou a ser usado quase exclusivamente para perguntar, em código, a alguém se, nesse dia, teve relações sexuais com desconhecidos e, se sim, com quantas pessoas.

Nunca o verbo «safar» foi tão usado e abusado como agora. O verbo em si mesmo já não era grande coisa, diga-se de passagem, mas até aqui ainda podia ter uma leitura positiva ou, no mínimo, inócua. Podíamos usá-lo para dizer que nos safámos no exame de código ou de condução, para dar dois exemplos comuns, ou ainda que conseguimos safar-nos de um grande maçador daqueles que nos filam e nunca mais nos largam. Claro que também sempre houve os que se safam de grandes castigos, ou safam outros da cadeia e de usarem pulseiras electrónicas, mas isso ia bater ao caso que todos sabemos e não é sobre ele que escrevo, embora também me apetecesse fazê-lo.

Tão grave como um juiz que safa os agressores de serem punidos, castigando as pobres vítimas ao devolver os ofensores à sociedade, permitindo-lhes que se aproximem delas sem que nada lhes aconteça (aos criminosos, leia-se, não às vítimas, pois estas ficaram para sempre condenadas e desprotegidas), dizia eu que tão grave como o mau uso de um mau verbo, é este «safar» ter passado a ser usado também para uma nova espécie de prostituição emocional consentida.

Explico melhor e abstenho-me de voltar à história do juiz, que nos tomou a todos de assalto com os seus acórdãos e ameaças de processos a toda e qualquer pessoa que levante a voz ou use a sua inteligência, humor e bom senso para discordar de sua eminência.

Entre os milhares de apps que surgem da noite para o dia, algumas servem única e exclusivamente para o «engate». Nada disto é novidade e nada disto seria da conta de terceiros se não fossem usadas até à náusea por adolescentes que pouco mais são que crianças. Não vou citar os nomes das apps de que falo para não lhes dar ainda mais montra, mas uso a palavra «montra» de propósito pois é disso que se trata, de uma montra virtual em que rapazes e raparigas muito jovens se expõem e vendem como mercadoria. A única diferença para as montras de prostitutas das ruas vermelhas de cidades como Amsterdão, é que estes miúdos não pagam nem cobram.

As apps de que falo são uma espécie de radar ambulante que permite identificar rapazes e raparigas que circulam no perímetro e estão disponíveis para encontros imediatos com sexo, a custo zero. Falo de custo financeiro, note-se, uma vez que a exploração sexual aparentemente livre e consentida envolve custos morais e emocionais muito elevados.

Os rapazes e raparigas que estejam em modo de «engate imediato, com sexo», usam estas apps com extraordinária frequência porque basta activar o radar e acrescentar as características físicas da presa que pretendem caçar. Na realidade, sejam altos ou baixos, louros ou morenos, gordos ou magros, todos eles se safam. Elas também.

Se o rapaz procura uma rapariga, escreve as medidas que idealizou e indica o tamanho desejável do peito, entre outras exigências relativas a outras partes do corpo, cor de pele, olhos e cabelo. Se é uma rapariga que procura um rapaz, também pode fazer as suas exigências e inserir os seus critérios usando outro tipo de medidas. Se são rapazes à procura de rapazes, ou raparigas à procura de raparigas, o processo é semelhante. Fácil e imediato.

No momento em que o radar está activo e indica a quantidade (sim, a quantidade!) de pessoas que circulam nas imediações com o mesmo propósito, as pessoas escolhem-se mutuamente e marcam-se através de uma palavra-chave. Depois basta irem ter ao ponto de encontro e dizerem essa mesma palavra. Se um diz e o outro responde, isso quer dizer que o código está certo e a pessoa também não está errada. Entre esse momento e aquele em que se envolvem fisicamente passam pouquíssimos minutos. Depois é com eles a decisão de passarem horas seguidas juntos ou despachar o «assunto» rapidamente.

No fim do dia é habitual entre estes rapazes e raparigas circular uma pergunta única:

– Safaste-te hoje?

Foi assim que o verbo safar passou a ser usado quase exclusivamente para perguntar, em código, a alguém se, nesse dia, teve relações sexuais com desconhecidos e, se sim, com quantas pessoas. A conjugação verbal pode ser feita no passado, no presente ou no futuro, já se vê.

«Estou-me a safar» e «vou-me safar» são frases repetidas, dia após dia, por jovens muito novos que procuram o prazer imediato e não têm medo de nada. Ou quase nada, diria eu, para ser mais exacta. Isto porque se, por um lado, não têm medo do desconhecido, por outro temem conhecer e dar-se a conhecer. Têm mais medo de criar relações e reforçar laços do que de se confrontarem com potenciais tarados, perversos e abusadores.

Custa pensar que estes rapazes e raparigas se atiram para o desconhecido com estranhos, sem se precaverem contra possíveis agressões. Sujeitam-se a todo o tipo de personalidades e fetiches, sabendo que estarão sozinhos e dificilmente poderão justificar o seu comportamento numa esquadra de polícia. Custa admitir que entre estes milhares de adolescentes viciados em apps de «engate» existe todo o tipo de jovens, com todo o tipo de educação e background. Dos mais bem-educados e «certinhos» aos mais depravados.

Como é que sei tudo isto, perguntarão alguns. Por ter amigos psi que lidam diariamente com os efeitos devastadores que estes comportamentos sexuais provocam em quase todos os que estão viciados neles. É impressionante a quantidade de rapazes e raparigas que saem de casa para ir para a escola e, durante o dia e sem quem ninguém desconfie absolutamente de nada, se entregam a este prazer perigoso, a este transe sexual que lhes dá uma ilusão de poder e conquista, mas depois os deixa reféns de uma espécie de droga.

A adição a comportamentos sexuais desta natureza é tão forte como a adição ao álcool e drogas. Custa desintoxicar e limpar, sobretudo porque os encontros são inteiramente clandestinos, não existem dealers e os traficantes são os próprios que consomem e se deixam consumir.

Sem moralismos e com muito realismo, vale a pena saber que esta realidade existe e alastra. Não para levantar uma suspeita geral sobre rapazes e raparigas novos* que aparentemente nada têm de suspeito, e cujos comportamentos são os próprios das suas idades, mas para passar palavra e tentar evitar que mais adolescentes fiquem presos nesta terrível e viciante rede de sexo fácil imediato e sem custos financeiros. Como é que isso se consegue? Quem me dera saber. Infelizmente não faço ideia nenhuma. Sei apenas que só conseguimos começar a resolver os problemas quando reconhecemos que eles existem. E «safar» passou a ser um verbo a evitar.

*Nota: é claro que estas apps não servem apenas de expediente às novas gerações, mas é preocupante saber que estas usam e abusam delas para sexo com desconhecidos, com todos os riscos que esta prática encerra.