quinta-feira, 14 de janeiro de 2016


Retrocesso


Pedro Vaz Pato

Um relatório do Parlamento Europeu sobre direitos humanos que condena a prática da chamada «gestação de substituição» (vulgarmente conhecida por barriga de aluguer) foi recentemente aprovado por larga maioria. Nele se afirma com veemência que essa prática é contrária à dignidade humana das mulheres (porque reduz a mercadoria o seu corpo e a sua função reprodutiva), afecta de modo particular as mais pobres e vulneráveis, e deve ser abolida universalmente.

Movimentos feministas têm-se mobilizado vigorosamente no sentido dessa abolição. Em França, tem-se destacado a filósofa Silvanne Agacinsky, autora de um bem fundamentado livro sobre esta questão (Le corps em miettes, Flammarion, 2013) e promotora da plataforma Collectif pour le respect de la personne. A este movimento deram o seu apoio, entre outros, Lionel Jospin e Jacques Delors. Em Itália, surgiu um movimento análogo, denominado Se non ora quando-Libere. Livia Turco, conceituada política italiana de esquerda e feminista, afirmou considerar essa prática «abominável» e um grave retrocesso na perspectiva dos direitos da mulher (Avvenire, 8/12/2015). Na Suécia, esta causa é assumida pela plataforma de organizações feministas Sverigeskvinnolobby. Todas estas e outras organizações confluem na plataforma internacional Stopsurrogacynow.

Parece que estas iniciativas não têm qualquer eco entre nós, num momento em que volta ao Parlamento a discussão sobre a legalização da «gestação de substituição» (através de um projecto de lei do Bloco de Esquerda – n.º 36/XIII), depois de, na legislatura anterior, um projecto que chegou a ser aprovado na generalidade não ter sido aprovado na votação final. Parece que este é mais um dos temas «fracturantes» apresentados como marcas de uma política «progressista». Quando, noutros países, como vimos, muitas são as vozes tidas por «progressistas» e «de esquerda» (não todas – é certo), que rejeitam essa legalização.

É verdade que o projecto de lei em questão (como outros anteriormente apresentados) veda a exploração comercial da prática, onde residiriam os maiores riscos de aproveitamento do desespero das mulheres pobres. Mas nenhuma das iniciativas acima descritas faz a distinção entre uma «gestação de substituição» tida por «maligna» e outra tida por «benigna» porque não comercial. De acordo com o manifesto Se non ora quando-Libere, acima referido, a «gestação de substituição» nunca é um acto de liberdade ou de amor, é sempre um acto de desespero. A experiência tem revelado a extrema dificuldade em impedir a comercialização encapotada por detrás da suposta não onerosidade dos contractos. Só situações de grande carência económica levam mulheres a sujeitar-se a tão traumatizante experiência (não é por acaso que a prática se vem difundindo na Índia) e essa sujeição não pode considerar-se expressão autêntica de liberdade. E os malefícios da «gestação de substituição» não dependem do seu carácter comercial.

Quando a mãe gestante é familiar da mãe requerente, poderá estar afastado qualquer resquício de exploração comercial. Mas suscitam-se gravíssimas consequências que já foram designadas como «curto-circuito geracional»: a criança com uma mãe gestante que é, simultaneamente, sua avó ou sua tia.

Com a legalização da «gestação de substituição, quer o filho, quer a mãe, são reduzidos a objecto de um contracto (seja ele oneroso ou não). O abandono da criança é, não um evento inevitável que deva ser remediado através da adopção, mas uma consequência deliberadamente programada, institucionalizada pela lei, a qual veda a obrigação mais espontânea e natural que existe: a de assumir a vida que se gerou.

O filho nunca deixa de sentir esse abandono. Cada vez se conhece melhor os intercâmbios entre a mãe gestante e o feto e a importância desse intercâmbio para o salutar desenvolvimento físico, psicológico e afectivo deste. A criança não poderá experimentar a segurança de reconhecer, depois do nascimento, o corpo onde habitou durante vários meses.

A mãe gestante não pode deixar de viver a gravidez como sua e de sofrer com o abandono do filho que lhe é imposto. O útero é inseparável do corpo e da pessoa, não é um alojamento temporário, ou um instrumento técnico. A gravidez não é uma actividade como qualquer outra; transforma a vida da mulher fisica, psicologica e moralmente.

Em vários países, é reconhecido à mãe gestante o direito de se arrepender e ficar com a criança à sua guarda (o que não deixa de ser contraditório com a obrigação que assumiu perante os requerentes). Comenta a este respeito Sylviane Agacinsky: não significa isso o reconhecimento implícito de que se estão a «violentar sentimentos humanos profundos e legítimos» e a «ferir emoções humanas elementares»?

Com a ilusão de que assim se curam os dramas da infertilidade (o que não é verdade), e em nome de um pretenso «direito ao filho», corremos, assim, o risco de assistir passivamente a um grave retrocesso social.





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