Helena Matos, Observador, 27
de Dezembro de 2015
Marcelo Rebelo de Sousa: «Pode-se
poupar em muita coisa, mas poupar na saúde dos portugueses não é um bom
princípio para quem quer afirmar a justiça social e construir um Estado
democrático mais justo», declarou aos jornalistas, no início de uma visita ao
Hospital de São José, em Lisboa.
Maria de Belém: «Tesouraria»
não pode estar à frente «da defesa do valor da vida».
Marisa Matias, considera
que a morte de um homem no São José é uma consequência da austeridade imposta
pelo anterior Governo. «Foi uma política que matou gente. Foi denunciado em
devido tempo que esta política de austeridade e este ciclo de empobrecimento
que estava a ser posta em prática pelo Governo de direita levaria mesmo a
muitas vidas que se perderam».
Perante este tipo de considerandos, sobretudo os
provenientes de Marcelo Rebelo de Sousa e de Maria de Belém, apetece perguntar:
pensam estes candidatos à Presidência da República recorrer ao SNS quando
tiverem problemas de saúde? Caso respondam afirmativamente, estimam viver
quantos anos mais? É que para falar deste modo, como se não houvesse amanhã,
tem de se estar dotado da forte convicção (eu diria antes fé) de que se vai
gozar de uma saúde de ferro até àquele derradeiro momento em que a bondade de
uma morte súbita porá fim a vida tão saudável. (De caminho também é
indispensável estar disposto a descer moralmente muito para subir um pouco mais
nas sondagens, mas esse é outro assunto.) Afinal a quem não sabe que morte o
espera e de que doenças vai sofrer resta apenas uma pragmática certeza: todos
podemos acabar num hospital. Que este se organize em função dos doentes ou das
questões contratuais do seu pessoal não é a mesma coisa.
Mas vamos ao que suscitou esta sucessão de
declarações dos candidatos à Presidência da República: a morte a 14 de Dezembro
de um homem de 29 anos, no Hospital de São José, depois de ter sido internado
no dia 11. No momento do internamento foi-lhe diagnosticada uma hemorragia
cerebral provocada por um aneurisma o que obrigava a uma intervenção cirúrgica
rápida. A intervenção nunca aconteceu porque dia 11 era sexta-feira e no
Hospital de São José ao fim-de-semana (a sexta-feira à tarde já entra no
conceito de fim-de-semana?), não se encontravam equipas de neurocirurgia. E
porque não se encontravam equipas de neurocirurgia em São José? Pela mesma
razão porque os tratamentos mais rigorosos são interrompidos com a maior das
naturalidades ao fim-de-semana e feriados: porque no país em que oficialmente a
saúde não tem preço nem se discute quanto nos custa e como funciona o que não
tem preço, florescem os mais fantásticos negócios e crescem destravados
privilégios à conta desses dogmas.
Tanto quanto se sabe – e sabe-se pouco porque em
geral nestas discussões sobre os serviços públicos ditos gratuitos evita-se dar
números enfatizado sim a questão abstracta dos «meios», dos «cortes», dos
«recursos» que ora existem ora são cortados… – em 2013, os enfermeiros do
Hospital de São José, declararam-se indisponíveis para fazerem turnos
extraordinários aos sábados e domingos. Médicos e radiologistas secundaram-nos.
Segundo o Expresso esta recusa deveu-se a uma redução de
aproximadamente 50 por cento dos valores que médicos e enfermeiros então
cobravam por cada dia de prevenção (sem presença física no hospital) durante o
fim-de-semana. Ou seja os médicos passariam de 500 para 250 euros e os
enfermeiros de 260 para 130 (valores aproximados).
Não estou a dizer que seja muito ou pouco. Bem ou
mal pago. Mas para uma saúde que não tem preço digamos que é um preço muito
alto para estar de prevenção. À conta da saúde que não tem preço, do «na saúde
não se poupa» e da imagem cara a Maria de Belém da tesouraria versus o valor da
vida acabámos a criar um monstro de duas faces. De um lado, resguardadas na
opacidade da saúde dita gratuita estão as corporações a aumentarem os seus
privilégios e os seus ganhos (neste caso concreto é dificílimo perceber quanto
se pagava às equipas de neurocirurgia antes de 2013, quanto se pagou em 2014 e
2015 e quanto se vai pagar agora que foi anunciado um novo acordo). Na outra
face estão os políticos a dizerem às pessoas aquilo que eles, políticos, acham
que os eleitores querem ouvir. E nenhuma destas faces está interessada em
discutir a sobrevivência do SNS ou a sua qualidade. O que lhes interessa é a
sua sobrevivência pessoal dentro do SNS (caso das ordens, sindicatos,
interesses na área do medicamento) ou, no caso dos políticos, evitar ser
destruído pelas corporações do SNS como aconteceu com Leonor Beleza ou acabar
discreto mas firmemente afastado por elas, como sucedeu com Correia de Campos.
Contudo, e para lá do que dizem e sobretudo do que
calam as duas faces, Portugal gasta muito com o SNS, gasta comparativamente
mais que outros países mais ricos – mesmo com os cortes, os gastos totais com a
Saúde em Portugal mantiveram-se acima da média da UE – e tanto Marcelo Rebelo
de Sousa como Maria de Belém sabem-no. Quanto a Marisa Matias não sei se sabe
ou se tal como Marcelo e Maria de Belém faz de conta que não sabe mas espero
que o mais rapidamente possível apresente dados, números e casos da «tanta
gente» que no seu dizer morreu em consequência dos «cortes na saúde». E de
caminho pode precisar quanta gente cabe em «tanta gente»?