Diogo Costa
Gonçalves, Observador, 11 de
Fevereiro de 2017
A solidariedade é
sentida como o primeiro e mais expressivo dever de humanidade. Por isso se
rebela a inteligência e o coração contra os muros que se erguem e contra os
mortos que ninguém chora.
Uma só coisa é certa no debate da
eutanásia: está em causa uma fronteira civilizacional. Ultrapassá-la ou
defendê-la, depende da perspectiva.
A questão de fundo é inelutável: a
centralidade da autonomia, como valor antropológico e jurídico.
É em nome da autonomia que se
reclama o direito a decidir quando e em que circunstâncias podemos pôr termo à
própria vida; é em nome da autonomia que se exige a assistência médica nesse
momento singular; é em nome da autonomia que se postula uma leitura
dignificante, altruísta, humanizadora do que até há bem poucos anos era sinal
de barbárie… E é também em nome da autonomia que se condena qualquer visão diferente,
catalogada como intolerante e sem direito de cidadania, porque, justamente,
parece ameaçar a auto-determinação do sujeito.
Sucede, porém, que a autonomia é um
mito: um novo dogma moderno com pouca sustentação na realidade. Não, não somos
autónomos! Não o é o bebé recém-nascido, nem o idoso, nem o doente terminal.
Nem sequer o adulto na plena posse das suas faculdades. Talvez gostássemos de o
ser. Talvez até estivéssemos dispostos a queimar incenso no altar da velha
Aytomatia grega… mas não somos autónomos!
Pelo contrário: o que é próprio da
nossa experiência humana é a contingência, a fragilidade, a necessidade e a
dependência face ao outro. Não há segundo da nossa existência em que não
estejamos nas mãos de alguém.
Essa vulnerabilidade genética que
todos experimentamos, não é aviltante. Pelo contrário: está associada ao que de
mais belo e digno tem a nossa condição humana. Somos tanto mais humanos quanto
mais somos dos outros e para os outros.
No mundo das ideologias, é possível
conceber muitos sujeitos autónomos, mas na realidade da vida – da nossa vida
concreta de todos os dias – é impossível encontrar uma única pessoa que o seja
realmente.
Por isso, a solidariedade é sentida
como um dever: o primeiro e mais expressivo dever de humanidade. Por isso se
rebela a inteligência e o coração contra os muros que se erguem e contra os
mortos que ninguém chora.
Ora, é justamente aqui que reside a
falácia da eutanásia.
Ao reclamar uma plena autonomia para
o sujeito, o que se está a fazer é a negar a solidariedade como um dever
irrenunciável. Quando aquele que depende de mim pode morrer, que obrigação
terei eu de lhe assegurar a vida?
Se a dependência é vista como um
fardo, como uma indignidade, o direito a uma morte rápida e indolor
transforma-se facilmente num dever de morrer dignamente, de não ser pesado, de
não onerar o outro com a minha existência.
Não tenhamos dúvidas: é isto o que está em
debate na eutanásia. O sofrimento do outro – por quem, infelizmente, poucos
realmente se interessam – é apenas um pretexto emocional para a discussão… tudo
mais (menos cuidados paliativos, mais consentimento informado, etc.) são minudências
de uma discussão que só não vê quem não quer.
Sem comentários:
Enviar um comentário