terça-feira, 10 de março de 2015
Vivemos tempos de hipocondria?
Revista do Expresso, 7 de Março de 2015
Gary S. Chapman / Getty images
Texto Luciana Leiderfarb infografia Ana Serra
«Este é o reflexo de uma sociedade com falta de pudor no exagero do tratamento, que é altamente tecnológica e que não quer morrer», diz Manuel Sobrinho Simões
Diz o ditado que quem procura, encontra. E quem procura utilizando os mais inovadores meios de rastreio, encontra quase sempre. A mesma classe médica que advogou o diagnóstico precoce alerta para os perigos de sobrediagnosticar.
O diagnóstico precoce foi, nas últimas décadas, responsável pelo decréscimo da mortalidade em doenças potencialmente letais, como o cancro. E todos já ouvimos, alguma vez, o discurso médico a apregoar os seus benefícios. Por «todos», leia-se os cidadãos de uma sociedade obcecada pela doença, com acesso aos mais inovadores meios de diagnóstico, viciada em check-ups e no consumo da saúde, no fundo, na procura do que está errado mesmo quando nada aparenta estar. Sim, há doenças que mais vale encontrar o mais cedo possível. Mas não cedo demais.
O alerta vem da própria classe médica, que tem vindo a chamar a atenção para os perigos do sobrediagnóstico (overdiagnosis). O termo, de utilização recente, denuncia o diagnóstico em indivíduos saudáveis de doenças que nunca iriam desenvolver sintomas ou serem letais. É usada sobretudo pelos especialistas em cancro, referindo-se a lesões pré-cancerosas e microscópicas que são encontradas por acaso («acidentalomas»), graças aos avanços da imagiologia médica, mas cuja evolução pode não se verificar. Porém, uma vez que se deu por eles, o comportamento médico mais comum é rotulá-los de «cancro» e desencadear toda uma série de tratamentos caros e agressivos a que o paciente poderia ser poupado.
«Quando ouvem a palavra ‘cancro’, os pacientes assumem que irá progredir e causar a morte. Mas deparamo-nos com demasiados cancros de evolução lenta, que não deveriam sequer ser encontrados», diz Laura Esserman, que dirige um painel de médicos do Instituto Nacional de Cancro (INC) norte-americano a estudar o assunto, citada pelo «Wall Street Journal». Este grupo defende uma mudança de atitude na pesquisa sobre o cancro que começa pela linguagem, propondo que, em vez de cancros ou carcinomas, as lesões pré-malignas sejam identificadas como «lesões indolentes de origem epitelial», ou IDLE.
Estudos recentes demonstram que 30% dos cancros da mama, 60% da próstata e 90% da tiroide são de improvável evolução. A estes últimos dedicou-se Manuel Sobrinho Simões, tendo no ano 2003 coassinado, no «International Journal of Surgical Pathology», um texto conhecido como «Porto Proposal» que, já então, advogava uma alteração no léxico médico que tornasse os microcarcinomas em simples microtumores. Para o investigador, «não se devem fazer biopsias a lesões abaixo de 1 cm. Porque se meter uma agulha, na maioria dos casos vou encontrar microcarcinomas e as pessoas, nesses casos, querem ser tratadas.» E porque é aconselhável não o serem? «Há lesões pequenas que, deixadas à sua história natural, não se vão desenvolver. A epidemia de cancro que presenciamos é fruto da longevidade mas também do desenvolvimento dos meios de diagnóstico, que permitem ver lesões cada vez mais pequenas.»
Em 2014, um artigo do «New England Journal of Medicine» destacava uma pesquisa sobre a Coreia do Sul, onde um aumento exponencial de cancros da tiroide nas mulheres coincidiu com o uso generalizado de aparelhos de imagiologia de última geração. Por outro lado, verificava-se um ligeiro aumento da mortalidade. Isto levou médicos como H. Gilbert Welch a concluir que se o recurso à TAC e à ressonância magnética ajuda a detectar cancros em estádios precoces, não faz a mortalidade por cancro decrescer. Este internista norte-americano, autor do livro «Overdiagnosed — Making People Sick in the Porsuit of Health», diz que é preciso «procurar de forma menos impetuosa cancros diminutos e fazer um esforço em diferenciar quais cancros irão trazer consequências ou não».
É o que está a ser feito por Harold E. Varmus, prémio Nobel da Medicina em 1989 e actual director do INC, que conduz uma investigação centrada «não tanto nas formas de detectar prematuramente o cancro», mas «nos factores que podem determinar quão agressivo este irá ser». Porém, enquanto não houver resultados, outras instituições relevantes como a American Cancer Society mantêm uma posição cautelosa. «Entre 10% e 30% das mulheres com cancro de mama ficariam bem se apenas as observássemos continuadamente. Mas não posso olhar nos olhos delas e dizer: «Você está entre as 10% a 30% que não deveria ser tratada», contrapôs o seu presidente, Otis Brawley.
Sobrinho Simões concorda com o melindroso da questão. E refere que outras doenças, como a hipertensão, a asma e a depressão, estão também a ser sobrediagnosticadas. Será o reflexo de uma sociedade hipocondríaca? «Isto é uma discussão das sociedades afluentes ocidentais, que se podem dar ao luxo de pôr em causa o valor quase milagroso do diagnóstico precoce. E é certamente o reflexo de uma sociedade com falta de pudor no exagero do tratamento, que é altamente tecnológica e que não quer morrer.»
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