Pe. Vasco Pinto de Magalhães,
Observador, 22 de Fevereiro de 2016
Como é possível que, num mundo cheio de mortes por
ideologias fanáticas que pretendem um mundo limpo de infiéis, sem dignidade nem
lugar, estejamos nós a discutir como matar para eliminar o sofrimento
Gostava de perceber o que se entende por dignidade.
Para os defensores da eutanásia, esse tem sido um argumento. Mas dá vontade de
perguntar: uma pessoa sofrida, em grande sofrimento, por uma doença ou
situação «sem cura» perde a dignidade? A mãe a fazer o luto de um
filho, por exemplo, ou um deficiente profundo, um doente «terminal» ou o Papa
João Paulo II tremendo e babando-se nos seus últimos tempos, tornaram-se
indignos? Não seria melhor «ajudá-los a morrer» ou, talvez, «matá-los
piedosamente»? A resposta que me dão é que «faz muita impressão», que «não há
direito de deixar ali a sofrer», que «a sua vida já só é um peso para si mesmo
e para os outros» que «a sua vida acabou», «que sentido tem?»; e por isso mais
vale acabar mesmo… e nós ajudamos; claro… se for esse o seu desejo pedido com
liberdade.
Vale a pena comentar e responder a estas questões.
1) Então, a dignidade da morte viria desta ser a
pedido, consciente e livre! Mas… todos sabemos que a liberdade é sempre
condicionada e, de modo especial, ainda mais, no grande sofrimento ou na
euforia. Um mínimo de psicologia e de entendimento da linguagem sabe
que não se pode tomar à letra o que se ouve ou se lê. Quantas vezes
atendo pessoas que mais ou menos com insistência me dizem «não aguento mais»,
«não sei o que ando cá a fazer», «isto não faz qualquer sentido», «quero
morrer, ajude-me», etc. Então começa a conversa, respeitando essa dor. Conte-me
a história toda, vamos ver por onde entra essa imensa solidão ou essa revolta,
essa culpabilidade ou experiência de desamor insuportável… vamos falar dessa infelicidade,
desse medo aterrador, desse sentimento de exclusão… E, tirando alguns casos de
suicidas obsessivos, sempre se encontra algum caminho, uma janela, que ajuda a
ver a luz (lá ao fundo), a descobrir uma aceitação possível. É preciso tempo,
paciência e acolhimento para que a pessoa se comece a sentir amada ou, pelo
menos, a admitir que pode ser reconhecido o seu valor. Tomo muito a sério a
pessoa que pede a morte, mas devo perguntar-me: quer morrer ou está a dizer-nos
outra coisa? Quer que aquele sofrimento morra, certamente. Mas a morte
pela eutanásia, não mata o sofrimento, mata a pessoa! Aliás o que a
minha experiência diz é que se eu, mais do que entender o seu sofrimento,
também lhe mostro que concordo com a eutanásia, o que lhe estou a comunicar é:
«realmente, mais um que acha que eu já não sirvo para nada».
2) A desfiguração e o sofrimento psíquico
ou físico não tira dignidade à pessoa: esta, por maior que seja a
limitação, não deixa de ser pessoa, sempre digna de ser respeitada e
amada. O que é indigno na pessoa é a mentira, a corrupção, a inveja, a
prepotência e a soberba que exclui e escraviza. A eutanásia também não
resolve essas doenças morais, nem dá espaço para que sejam repensadas e
superadas, eventualmente, com o acompanhamento, com o perdão e o paliativo
necessário. Se, em vez de acompanhar a pessoa, para lhe dar dignidade a mato,
não só não a compreendi como a «coisifiquei». Diz-se: faço-o por pena, para que
não sofra! Mas bem dizia o Prof. Daniel Serrão: «a morte por compaixão é a
morte da compaixão». Na verdade o que acaba ali é a relação e o cuidado com
o outro; e, por um acto não médico, alivia-se a tensão: resolve-se, sim, o
problema de quem acompanha e já não sabe lidar com ele. Uma subtil tentação,
nem sempre perceptível, sob a capa de parecer que é um agir «pro vida».
3) A morte a pedido manifesta a autonomia da pessoa
e daí a sua dignidade? Pode parecer, mas vejo aí uma confusão entre
auto-suficiência e autonomia. Autonomia significa que se tem uma «lei
própria» e se tem consciência dela e se é coerente com ela, com todos os seus
condicionamentos. A pessoa vai-se tornando cada vez mais autónoma na medida em
que se vai tornando cada vez mais moralmente livre. E a liberdade,
que é uma aprendizagem difícil, é a capacidade de gerir os seus
condicionamentos e escolher o bem maior; isto é, decidir-se pelo que é
mais humano e mais nos humaniza como seres sociais. A auto-suficiência é não
ter que dar contas a ninguém e fazer o que se entende por imaginar que se pode
dispor de si e dos outros «como se quiser». Não somos auto-suficientes. A morte
a pedido pode não parecer, mas é uma tentação de auto-suficiência. Escolher
matar-se tal como matar, não é, certamente, escolher o bem maior – com
autonomia e liberdade. É mais um grito de socorro. E socorrer deve ser um acto
inteligente (o que se passa aqui? Qual é a dor?) e não uma cedência a um
impulso ingénuo e «piedoso».
4) Se admitirmos que há um direito a querer
morrer (e um direito a que me matem?), isso não implica que alguém, um médico,
por exemplo, tenha o dever de o fazer. Terá o dever moral de ajudar
quem faz tal pedido, na medida das suas possibilidades, mas ninguém pode impor
essa obrigação de matar outro, mesmo que compreenda a sua dor e o seu pedido.
Se se chegasse a legalizar a eutanásia devíamos ter claras várias coisas
importantes. A primeira, que o que é legal não só não é necessariamente bom,
como não é necessariamente legítimo moralmente. A segunda, que os direitos de
uns não podem forçar os de outros; além do direito de discordar, tem-se o
direito a que se respeite, positivamente, a objecção de consciência. Por fim, cada
um deveria ter o direito de ter a lista toda dos médicos «eutanasistas». Eu
não recorreria a um médico que pudesse olhar para mim e pensasse «este já está
a mais; não vai longe; a sua vida não é digna!» Aliás, nenhum parlamento tem
direito a avaliar e legislar sobre a vida. Isto é a determinar que há vidas que
se podem descartar ou que não são dignas; mesmo que se diga que é para
respeitar a autonomia e a liberdade.
5) A «solução» da eutanásia, no estádio
actual da medicina (do acompanhamento psicológico e espiritual, dos cuidados
paliativos, das possibilidades de enquadramento social, etc.), seria
uma saída completamente reaccionária e violenta. Sim, num estádio anterior
de civilização, cultural e socialmente falando, talvez se pudesse entender os
defensores da «boa morte» ou até os «abafadores». Mas, hoje, é difícil de
aceitar o matar como um bom caminho. É claro que é preciso compreender a dor de
quem acompanha a doença prolongada de uma pessoa querida sem ver saídas rápidas
e eficazes. Mas os cuidados paliativos também atendem e apoiam o contexto
familiar da pessoa em processo terminal, mais ou menos prolongado.
6) Há ainda um outro perigo ou tentação. A
eutanásia pode dar dinheiro! Poupar nos gastos com velhinhos ou
deficientes, ter mais facilmente espaço e camas para outros com mais
possibilidades e mais ricos, poderia ser um razoável negócio, dentro de
uma cultura de morte que elimine quem não é útil, quem não produz, ou quem
é considerado um peso demasiado. Nessa cultura, seriam os próprios infelizes,
pobres e feios a pedir a eutanásia, não encontrando lugar num «desejável mundo
cosmeticamente limpinho». Os totalitarismos já fizeram essa experiência e não
deu resultado. Como seria «O admirável mundo novo» dos «eutanasistas»?
7) Morte assistida! Todas as mortes devem
ser acompanhadas com cuidado respeito e afecto: não assistidas como quem vê
o espectáculo, mas como quem vive solidário esse momento tão importante de cada
vida humana. Porquê trocar os nomes à realidade? Para enganar quem? Se estou a
facilitar e dar condições para que alguém se suicide, não é suicídio assistido,
é conivência e participação. Se estou a «eutanasiar» outra pessoa, ainda que
com todo o jeito e preparação, estou a matá-la. Mesmo que tenha sido a seu
pedido, não é assistência, é ser autor «responsável». Para quê
branquear o acto de matar com o título de «morte assistida»? Se é
preciso perceber o que se quer dizer com «mata-me!», também é preciso
desmascarar o que se quer dizer com «dou assistência à tua morte!»
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