domingo, 14 de julho de 2013

O aborto ortográfico


João Pereira Coutinho (Folha de S. Paulo, 4 de Junho de 2013)

O acordo ortográfico é conhecido em Portugal como o aborto ortográfico. Difícil discordar dos meus compatriotas. Basta olhar em volta. Imprensa. Televisões. Documentos oficiais. Correspondência privada.

Antes do acordo, havia um razoável consenso sobre a forma de escrever português. Depois do acordo, surgiram três «escolas» de pensamento.

Existem aqueles que respeitam o novo acordo. Existem aqueles que não respeitam o novo acordo e permanecem fiéis à antiga ortografia.

E depois existem aqueles que estão de acordo com o acordo e em desacordo com o acordo, escrevendo a mesma palavra de duas formas distintas, consoante o estado de espírito – e às vezes na mesma página.

Disse três «escolas»? Peço desculpa. Pensando melhor, existem quatro. Nos últimos tempos, tenho notado que também existem portugueses que escrevem de acordo com um acordo imaginário, que obviamente só existe na cabeça deles.

Felizmente, não estou sozinho nestas observações: Pedro Correia acaba de publicar em Portugal «Vogais e Consoantes Politicamente Incorrectas do Acordo Ortográfico» (Guerra & Paz, 159 págs). Atenção, editores brasileiros: o livro é imperdível.

E é imperdível porque Pedro Correia narra, com estilo intocável e humor que baste, como foi possível parir semelhante aberração.

Sem surpresas, a aberração surgiu na cabeça de duas dezenas de iluminados que, em 1990, se reuniram na Academia de Ciências de Lisboa para «determinar» (atenção ao autoritarismo do verbo) como os 250 milhões de falantes da língua deveriam escrever. Qual foi a necessidade teórica ou prática do conluio?

Mistério. Em todos os países de língua portuguesa, com a excepção do Brasil, respeitava-se o acordo de 1945. E nem mesmo as diferenças na ortografia brasileira incomodavam os portugueses (ou vice-versa).

Nunca ninguém deixou de ler Saramago no Brasil por causa do «desacordo» ortográfico. Nunca ninguém deixou de ler Nelson Rodrigues em Portugal pelo mesmo motivo.

Acontece que as cabeças autoritárias sempre desprezaram a riqueza da diversidade. Em 1986, no Rio de Janeiro, conta Pedro Correia que já tinha havido uma tentativa ainda mais lunática para «unificar» a língua, ou seja, para unificar 99,5% das palavras (juro). Como?

Por uma transcrição fonética radical que gerou termos como «panelenico» (para «pan-helênico») ou «bemumurado» (para «bem-humorado»). Será preciso comentar?

O novo acordo é menos radical desde logo porque admite «facultatividades» que respeitem a «pronúncia culta» de cada país. Deixemos de lado a questão de saber se a escrita pode ser mera transcrição fonética (não pode) ou se a etimologia deve ser ignorada nas «simplificações» acordistas (não deve).

Uma deficiente interpretação do que significam essas «facultatividades», conta o autor, levou o governo português, no seu Orçamento do Estado para 2012 (o documento central da política lusa), a escrever a mesma palavra de formas diferentes: «ópticas» e «óticas»; «efectiva» e «efetiva»; «protecção» e «proteção»; e etc. etc.

Mas mais hilariantes são os casos em que a aproximação portuguesa ao Brasil gerou palavras que nem no Brasil se usam. No novo acordo, «recepção» perdeu o «p»; no Brasil, o «p» continua. O mesmo para «acepção», «perspectiva» e por aí fora.

Perante este aborto ortográfico, que fazer?

Curiosamente, Angola e o Brasil já fizeram muito: a primeira, recusando-se a ratificá-lo; o segundo, adiando a sua aplicação.

Só os portugueses continuam a marrar contra a parede – e, pior, a marrar contra uma ilegalidade: o tratado original do Acordo Ortográfico de 1990 garantia que o mesmo só entraria em vigor quando todos os intervenientes o ratificassem na sua ordem jurídica. Essa intenção foi reafirmada em protocolo modificativo de 1998.

Mas eis que, em 2004, há um segundo protocolo modificativo segundo o qual bastaria a ratificação de três países para que o acordo entrasse em vigor.

Não é preciso ser um génio da jurisprudência para detectar aqui um abuso grosseiro: como permitir que o segundo protocolo tenha força de lei se ele nem sequer foi ratificado por todos os países?

O resultado é o caos. Como escreve Pedro Correia, um caos «tecnicamente insustentável, juridicamente inválido, politicamente inepto e materialmente impraticável».

Para usar uma palavra bem portuguesa, «touché»





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