O projecto de lei de alteração da regulação da procriação medicamente assistida apresentado pelo Bloco de Esquerda, e actualmente em discussão, pretende garantir o acesso a essa técnica a mulheres sós ou numa relação homossexual, independente do diagnóstico de infertilidade. Já foi saudado por representar uma quebra da «desigualdade arcaica que reduz as mulheres a apêndices dos homens» (São José Almeida in Público de 24/12/2011), isto é, a que exige necessariamente o contributo destes para a procriação.
O alcance antropológico da alteração proposta, que a torna
mais uma etapa da agenda fracturante, merece atenção e aprofundamento.
Na verdade, não se verifica uma «desigualdade ancestral» a
este respeito. A natureza colocou, neste aspecto, homens e mulheres em estrito
pé de igualdade: as mulheres não procriam sem os homens, mas os homens também
não procriam sem as mulheres. Ninguém é mãe sozinha e ninguém é pai sozinho.
Não se trata de um desígnio a corrigir ou anular, como se não tivesse sentido.
Cada um dos sexos não pode deixar de reconhecer, assim, a importância do outro.
Assim se exprime a estrutural relacionalidade da pessoa humana, que se realiza
na comunhão com o outro. Essa comunhão está na origem da vida a partir da
unidade da diversidade mais elementar: a que distingue homens e mulheres. Da
riqueza da dualidade sexual nasce a vida. Associar a geração da vida à comunhão
e ao amor (a vida é fruto do amor e o do amor nasce a vida), e à riqueza da
dualidade sexual, não é um «engano» da natureza, mas um desígnio maravilhoso a
aceitar e acolher.
A alteração proposta pretende consagrar uma visão
radicalmente diferente: a procriação como instrumento de realização de um
projecto individual, e não relacional. O filho tende, assim, muito mais, a ser
encarado como espelho do único progenitor, e já não como dom a acolher na sua
alteridade e unicidade. Passa a ser visto como objecto de um direito que se
reivindica. É o «direito à parentalidade» que está em jogo - afirma-se em
defesa do projecto em discussão.
A procriação medicamente assistida tem sido encarada, à luz
da lei vigente (que não deixa de ser também merecedora de críticas) como forma
de suprir a infertilidade, não como alternativa à procriação natural. Não é
(como, num plano semelhante, não o é a adopção) um instrumento de
«experimentalismo social» ou de «engenharia social» ao serviço de «novas formas
de família». A criança gerada através de procriação medicamente assistida, como
a criança adoptada, tem o direito a uma família como as outras, a uma família
tanto quanto possível próxima da que tem origem na procriação natural.
Não se trata de impor um modelo de família ou uma forma de
encarar a maternidade. Trata-se de dar primazia ao bem do filho, que não pode
ser coisificado como objecto de um direito. Não há um direito ao filho; o filho
é um dom. O bem do filho exige que ele seja fruto de uma relação, e não de um
projecto individual. E exige que ele não seja intencionalmente privado de uma
mãe ou de um pai. É ele que tem direito, não tanto a um progenitor
indiferenciado (como pretende a ideologia do género, ao pretender que se fale
em parentalidade), mas a uma mãe e a um pai.
Diz-se que interessa apenas a competência parental, e não o
sexo dos progenitores. Mas a mais competente das mães nunca poderá substituir
um pai, tal como o mais competente dos pais nunca poderá substituir a mãe; o
que sempre afirmaram os estudos de psicologia do desenvolvimento infantil.
Nenhum de nós tem como referência um progenitor indiferenciado, mas a sua mãe e
o seu pai. E quem foi privado de alguma dessas referências não deixa de
lamentar profundamente esse facto.
O que agora se propõe é que da procriação medicamente
assistida nasçam crianças sem pai (sempre haverá um pai genético, necessariamente
anónimo, mas apenas isso), já não por acidente inevitável, mas de forma
intencional e programada. Numa fase seguinte, pretender-se-á que homens
homossexuais possam recorrer à maternidade de substituição para que nasçam
crianças sem mãe (o projecto em discussão ainda não dá essa passo, pois propõe
a regulação dessa prática apenas como forma de suprir a infertilidade, mas tal
passo já foi dado noutros países). Não me parece de saudar qualquer destas
pretensões.
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