terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Conto de Natal

Joaquim Mexia Alves


Curvado, mais pelo frio do que pelo peso da idade, caminhava apressado, arrastando os pés pela rua molhada, nem sequer sentindo que a água entrava pelos buracos dos sapatos já velhos e rotos.
Fosse esse o seu pior mal!
Tinha perdido a noção das horas e dos dias já há muito tempo, mas esta noite ele sabia qual era, e uma profunda tristeza juntava-se ao desespero da sua vida.
Era noite Natal, não tinha dúvidas, pois bastava olhar para as pessoas que por ele passavam, para perceber isso mesmo.
Enquanto caminhava naquela noite fria e chuvosa, a memória transportou-o para uma sala, onde uma lareira grande aquecia a casa e os corações à sua volta.

Mesmo ao lado da lareira o presépio, feito com todo o esmero, com musgo como deve ser, e com as figuras tradicionais que representavam aquilo que deviam representar.

No canto esquerdo da sala, a árvore de Natal, simples e discreta, porque devia ser o presépio a ocupar o lugar de destaque.

Por baixo da árvore, embrulhos de todas as cores e feitios, os presentes de Natal.
Não tinha a certeza, mas pareceu-lhe que, por debaixo da barba por fazer há tanto tempo, um sorriso se tinha aproximado dos seus lábios.
Pieguices, pensou ele, coisas do passado que já não voltam!
Mas isso obrigou-o a recordar a sua infância no Natal em casa dos seus pais, à volta do presépio, e a voz profunda do seu pai repetindo todos os anos:
Se deixarmos Jesus nascer nos nossos corações e se com Ele vivermos, nada nem ninguém nos pode tirar a paz e a alegria, e Ele nunca nos deixará sozinhos.
Tretas, disse ele entre dentes, tretas, basta bem olhar para mim!
Lembrou-se então que tinha seguido o conselho do seu pai durante uns anos.
O curso acabado, o primeiro trabalho, a primeira empresa, o seu casamento, a filha e o filho, a casa boa e a boa vida, uma aparente felicidade e a certeza de que nada lhe faltaria.
Algures durante esses anos afastou-se do conselho do pai e Jesus deixou de fazer parte da sua vida, embora, claro, comemorasse o Natal, tentando dar sempre os melhores presentes, até para mostrar como estava bem na vida.
E depois veio aquele ano terrível!
As finanças entraram em colapso, as encomendas deixaram de existir, deixou de haver dinheiro para os ordenados e finalmente os bancos exigiram o pagamento dos valores que tinha pedido para investir na empresa.
Num instante viu-se na rua, sem empresa, sem casa, sem nada e com uma vergonha impossível de suportar.
O mundo tinha-se abatido sobre ele e nada nem ninguém o podia ajudar!
Achava-se um nada, um ninguém, uma vida sem sentido e só a falta de “coragem” é que o impedia de pôr fim à vida.
Um dia não podendo suportar mais a vergonha, afastou-se definitivamente da família, dos filhos, e embrenhou-se na rua, onde passou a viver da esmola, da caridade, dos expedientes de momento, sem qualquer rumo, sem qualquer sentido, esperando apenas que a morte o levasse.
Tinha desistido de si próprio!
Tinha reparado como esta vida de rua, onde andrajoso e sujo agora vivia, podia transformar um homem em coisa nenhuma.
Havia pessoas que ele conhecia e passavam por ele na rua e, se ao princípio lhe parecia que o evitavam, rapidamente começou a perceber que agora nem o reconheciam, aliás, era um sentimento como se não existisse, ou seja, viam-no, mas era como se ele fosse transparente.
Já não havia nada a fazer, já não era ninguém, já não tinha sequer existência!
Lembrou-se então, nem percebia porquê, do conselho do seu pai, e pensou na sua miséria:
Será que se eu tivesse continuado a deixar nascer Jesus no meu coração, e a viver com Ele todos os dias, agora estaria melhor? Seria verdade que Ele estaria sempre comigo, até aqui na rua onde estou?
Voltou-lhe ao pensamento a frase que há um pouco tinha sussurrado entre dentes:
Tretas, basta bem olhar para mim!
Mas levado não sabia bem porquê, num murmúrio para si, quase desafiou Jesus dizendo:
Olha Jesus, hoje é noite de Natal. Por aqueles tempos em que Te segui arranja lá qualquer coisa que me faça sentir melhor!
Riu-se de si próprio, pensando que agora já não estava apenas só e sem nada, agora também estava louco!
Continuou a caminhar apressado, pois sabia bem que a carrinha daqueles jovens que lhes levavam à noite, comida e bebida quentes, devia estar a chegar ao sítio do costume, e ele queria ser dos primeiros, para ainda ter de beber e de comer.
Chegou enfim ao local quase ao mesmo tempo em que a carrinha aparecia, e reparou que felizmente ainda estavam poucos colegas de infortúnio à espera da distribuição da comida e da bebida.
Olhou para a carrinha e reparou que eram dois rapazes e duas raparigas que faziam a distribuição, mas logo desviou o olhar, porque se tinha vergonha de tudo, dos jovens ainda pior, talvez porque apesar de tudo, sentisse que lhes estava a dar um mau testemunho de vida, a eles que afinal ainda tinham a vida toda pela frente.
Aproximou-se de cabeça baixa e recebeu das mãos de uma das jovens uma caneca fumegante e um pedaço de pão com carne.
A jovem disse-lhe então com uma voz suave:
Ao menos olhe para mim!
Num momento fugaz levantou a cabeça de olhos fechados, com vergonha, e baixou-a imediatamente, afastando-se rapidamente do local.
Não tinha dado três passos sentiu uma mão no ombro e ouviu uma voz que lhe dizia agora mais insistentemente, quase numa súplica:
Olhe para mim!
Havia naquela voz algo familiar que o levou a levantar a cabeça e olhar nos olhos da jovem que lhe tocava.
Nesse momento ouviu outra vez aquela voz que lhe atingiu o coração, e dizia agora repassada de tristeza e alegria ao mesmo tempo:
Pai, ó pai, és tu?!
Deixou cair tudo no chão, pois aqueles braços apertavam-no de tal maneira que ele não podia quase respirar.
Abraçou-se a ela também, tremendo, a garganta seca, não o deixava proferir palavra.
Ouviu então novamente a voz da sua filha que lhe dizia:
Anda pai, vamos para casa. Temos estado todos os dias à tua espera!
Aquelas e aqueles que ali estavam à volta daquela cena, podiam jurar que naquele momento tinham ouvido um coro celestial que cantava:
Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens por Ele amados!

Monte Real, 3 de Dezembro de 2009

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