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DESCONSTRUIR A HETERONORMATIVIDADE PELA PORTA DOS FUNDOS
Luís Aguiar-Conraria, Observador, 10 de Outubro de 2018
Três académicos publicaram, propositadamente, artigos fraudulentos em algumas das melhores revistas científicas de certas áreas de estudo para mostrarem como se vende ideologia como se fosse ciência.
Na semana passada, rebentou um belíssimo escândalo no meio académico internacional. Três académicos, James Lindsay, Peter Boghossian e Helen Pluckrose (que se juntou à equipa quando o projecto já tinha começado), publicaram, propositadamente, artigos fraudulentos em algumas das melhores revistas científicas de determinadas áreas de estudo, a que os autores, depreciativamente, chamam Grievance Studies. Algo que poderíamos traduzir como «Área do Ressentimento» ou da «Vitimização». O objectivo deste projecto era o de demonstrar que a produção académica nestas áreas é, em grande medida, uma fraude científica. Vende-se ideologia como se de ciência se tratasse.
Para levar a cabo o seu projecto, estes três autores mergulharam na literatura científica num dado domínio — por exemplo, gender studies, estudos de género — e, ao longo de quase um ano, escreveram artigos em tudo iguais a muitos que já estão publicados. Mas, e esta é a parte relevante, os artigos eram absurdos e com falhas metodológicas gritantes ou mesmo eticamente inadmissíveis. A ideia era demonstrar que estes artigos, desde que se conformassem com a ideologia dominante daquelas áreas de estudo, seriam publicados em excelentes revistas das respectivas áreas científicas.
Comecemos pelo artigo que deu o título a esta minha crónica: Going in Through the Back Door: Challenging Straight Male Homohysteria, Transhysteria, and Transphobia Through Receptive Penetrative Sex Toy Use. Nele, os autores advogam que, para se diminuir a transfobia, a homohisteria e a transhisteria homens heterossexuais deviam experienciar prazer anal com uns vibradores. Não estou a gozar. Como forma de terapia para curar os problemas descritos, os autores sugerem que, em ambiente controlado, os homens sigam o tratamento prescrito. Cito a última frase: «A partir destes dados, concluímos que a transfobia e a transhisteria exibem uma relação tão estreita com o erotismo penetrativo anal que a penetração anal em ambientes «seguros» pode servir de remédio.» Este artigo foi mesmo publicado na Sexuality & Culture, uma boa revista académica. É inacreditável, mas é verdade. Não quero, de forma alguma, refrear o leitor de fazer esta experiência. Esteja à vontade, mas faça-o por bons motivos e não para curar qualquer homohisteria de que padeça.
Esta técnica de atirar uma ideia absurda ao ar e ver se a conseguem publicar numa reputada revista académica foi levada ao absurdo no artigo Our Struggle is My Struggle: Solidarity Feminism as an Intersectional Reply to Neoliberal and Choice Feminism. Como o título sugere, basearam-se no Mein Kampf, de Adolf Hitler. Para ser mais preciso, os autores pegam no capítulo 12 do livro e adaptam os argumentos a defender a necessidade de um partido nazi para explicar a necessidade de um feminismo solidário que combata a opressão. O artigo foi aceite para publicação na revista Affilia: Journal of Women and Social Work, uma revista bastante cotada na área de Estudos Feministas. É caso para dizer que o insulto muitas vezes usado contra algumas feministas, feminazi, ganha uma nova vida com esta publicação.
Não se fique com a ideia de que estes exemplos (e o melhor ainda está para vir) são casos isolados. Estas três pessoas escreveram 20 artigos, dos quais 7 já estão publicados e 4 estão muito bem encaminhados. 11 artigos publicados em boas revistas é um número suficiente para fazer carreira em muitas universidades.
Infelizmente, este projecto teve um fim prematuro. O primeiro artigo que publicaram gerou tanta celeuma que o Wall Street Journal resolveu investigar o assunto, levando os autores a auto-denunciarem-se, pelo que nunca saberíamos quantos, dos 20 seriam aceites para publicação. Esse primeiro «trabalho» tem o título de «Human Reactions to Rape Culture and Queer Performativity in Urban Dog Parks in Portland» e foi publicado na prestigiada revista Gender, Place & Culture, uma revista que se assume como sendo de «geografia feminista». Nesse artigo, os autores relatam o que vêem em parques de cães e explicam que estes parques são espaços que promovem a cultura da violação. Mais precisamente relatam como os donos reagem quando os cães violam cadelas e quando praticam actos sexuais queer. Como referencial teórico os autores adoptam a Criminologia feminista negra —não me perguntem o que é isto; no original está Black feminist criminology.Concluem que tanto os cães, como os donos dos cães, devem ser treinados para terem comportamentos de género mais equilibrados, respeitando quer as fêmeas quer os machos queer. Enfim, querem que os sexualmente opressivos parques de cães se transformem em espaços de emancipação. O que denunciou os autores e levou à investigação jornalística foi a estatística de que ocorria uma violação por hora nesse parque para cães.
Note-se que o que este trabalho de campo — a que os antropólogos chamam estudo etnográfico — tem de preocupante não é o sabermos que é possível publicar artigos científicos fraudulentos em boas revistas. O problema que estes autores identificaram é bem mais grave. A técnica para conseguirem publicar estas fraudes foi a de escrever artigos em tudo iguais àquilo que é comum em cada uma das áreas de estudo. Como os autores explicam, a grande diferença que encontram entre os logros que conseguiram publicar e o «saber» académico que estão a emular é que eles têm consciência de que tudo o que fizeram é treta.
Esta última ideia pode ser ilustrada comparando uma das suas imposturas com um artigo verdadeiro. Num dos artigos fraudulentos, os autores queixam-se de que a astronomia é sexista, ocidental e colonialista. Defendem então uma abordagem feminista para a criação de conhecimento astronómico. Ora, a verdade é que podemos encontrar um artigo científico, em tudo igual, publicado na excelente revista Progress in Human Geography, com o título Glaciers, gender, and science: A feminist glaciology framework for global environmental change research. Neste artigo, que me foi sugerido por Isabel Pereira dos Santos (uma amiga facebookiana), propõe-se, precisamente, uma abordagem feminista para a produção de conhecimento sobre glaciares. Ou seja, uma glaciologia feminista. Cito o primeiro parágrafo da conclusão, lembrando que não estão a gozar: «Gelo não é apenas gelo. A forma dominante como as sociedades ocidentais o entendem através da ciência da glaciologia não é uma representação neutral da natureza. A abordagem feminista da glaciologia chama a atenção para aqueles que dominam e determinam a produção do conhecimento glaciar, para o discurso sexista da ciência e do conhecimento e da forma como a dominação colonial, militar e geopolítica co-constituem o conhecimento sobre a glaciologia.» Não sei o que estão a pensar, mas, para mim, este artigo é indistinguível do artigo fraudulento sobre a astronomia feminista. Quer-me até parecer que serviu de inspiração ao mesmo.
Não quero deitar fora o bebé com a água do banho. Em ciências sociais é normal que haja trabalhos politicamente empenhados. Por exemplo, alguém preocupado com as diferenças salariais entre homens e mulheres pode querer investigar o assunto para perceber as suas origens e, se for caso disso, propor medidas correctivas. Eu mesmo tenho trabalhos nessa área e não penso deixar de investigar o assunto. Mas há uma fronteira entre um trabalho politicamente empenhado e um trabalho politicamente comprometido que não pode ser cruzada. O que James Lindsay, Peter Boghossian e Helen Pluckrose mostraram é que essa linha há muito que ficou para trás em algumas sub-áreas das ciências sociais e das humanidades. Nestas disciplinas, a que chamaram genericamente Grievance Studies fez-se da vitimização um método científico.
Esta minha crónica pode, e deve, ser lida como uma anedota bem-disposta. Mas a verdade é que depois de rirmos, devemos também chorar. Sendo a comunidade académica uma das comunidades mais corporativas que existem, não é de esperar dela qualquer acção redentora. Nenhuma tentativa será feita para separar o trigo do joio. O mais provável é que se ataquem os autores deste estudo, que, na verdade, segue a melhor tradição etnográfica. Duvido, por exemplo, que algum dos editores das revistas científicas envolvidas seja corrido.
Adicionalmente, o «conhecimento científico» produzido por estas áreas é politicamente influente e, por isso, perigoso. Não estou à espera, obviamente, de que a CIG (Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género) vá enviar pelo correio um vibrador com instruções a todos os homens, na esperança de os tornar mais feministas e inclusivos, mas a verdade é que parte das suas recomendações são moldadas pelo que se produz nestas disciplinas académicas. Por isso é tão importante ter consciência de que muito do que é vendido nestas áreas como conhecimento e ciência não passa de ideologia. Por exemplo, num dos artigos convidados para ressubmissão, os autores defendem que os professores devem discriminar os estudantes com base no seu género e etnia, obrigando os estudantes brancos a sentarem-se no chão, incentivando os professores a não lhes darem atenção e a ridicularizarem as suas ideias. Sugerem mesmo que tenham correntes às costas, como forma de reparação pelos males que o homem branco causou às mulheres, aos povos de outras cores e a grupos marginalizados em geral. Que um artigo destes possa ser publicado numa revista de filosofia feminista mostra que, se calhar, já nem se trata de ideologia, mas sim de maldade e sadismo.
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