terça-feira, 11 de outubro de 2016


Mãe coragem


P. Gonçalo Portocarrero de Almada, Observador, 8 de Outubro de 2016

Heróis são a Liliana Melo e os seus filhos. É o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, que agora condenou o Estado português, por este incrível atropelo dos mais elementares direitos fundamentais.

Já lá vão mais de quatro anos desde que o Tribunal de Sintra mandou retirar, a Liliana Melo, sete filhos, com idades entre os seis meses e os sete anos. A implacável decisão judicial, que apanhou de surpresa a mãe, incapaz de se opor a uma tão dramática medida, foi executada com requintes de especial crueldade: a casa familiar foi cercada por polícias e os filhos que nela se encontravam – um dos sete conseguiu, felizmente, evitar a captura, encontrando-se desde então em casa de outros familiares – foram levados para diversas instituições, para adopção.

Sem meios económicos ou outros, Liliana Melo começou, nesse mês de Maio – em que, por cruel ironia, se celebra o dia da mãe – a percorrer a sua via-sacra. Não é difícil imaginar a sua angústia quando se viu só, num país que não é o da sua naturalidade, proibida de ter consigo os seus filhos e até de com eles contactar. Tratada pelas autoridades judiciais e policiais como se fosse uma criminosa, Liliana é responsável pelo crime de ser mãe de muitos filhos, com as agravantes de ser cabo-verdiana, muçulmana e pobre.

Mas Liliana Melo não desistiu. Graças a Deus, não lhe faltou, desde a primeira hora, o apoio de duas corajosas advogadas, que assumiram pro bono a sua defesa. E foi com surpresa que verificaram que, ao contrário do que seria de supor pela brutal decisão judicial, não constava a ocorrência de maus-tratos, abusos, violência doméstica ou grave negligência, que justificasse não só a retirada forçosa dos seis filhos, mas sobretudo a sua separação.

Mãe coragem, Liliana Melo teve que esperar três anos para ver, de novo, os filhos que a justiça portuguesa não só lhe roubou, como impediu de contactar. Graças a uma decisão provisória do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, de Fevereiro de 2015, o Estado português foi obrigado a pôr termo à separação dos irmãos, bem como à proibição que, até então, impediu a mãe de estar com estes seus filhos.

Vale a pena recordar esse primeiro encontro, três anos depois da dolorosa separação da família: «as crianças chegaram à sala e não houve nenhuma palavra trocada. A mãe apenas abriu os braços e estiveram a chorar, agarrados uns aos outros, durante largo tempo».

Mesmo já autorizada a visitar os filhos nas instituições que os acolheram, Liliana ainda teve que sofrer não poucas humilhações. Por exemplo, no aniversário de um deles, fez-lhe o bolo que sabia ser do seu especial agrado, meteu-se no comboio e foi ter com o «menino dos anos». Mas, ao chegar à referida instituição, foi-lhe dito que não lhe era permitido entregar ao filho o seu bolo preferido, mas que podia compra-lhe outro. Liliana confidenciou que, nesse dia, voltou para casa a chorar: eram muito diferentes o bolo comprado numa pastelaria e aquele que ele mais gostava, feito pela sua mãe!

Se a mãe nunca desistiu dos seus filhos, os filhos também nunca desistiram da mãe. Dois episódios. Um dos pequenos perguntou uma vez, a uma das advogadas que tratavam do caso, quando é que acabava o «para sempre», porque tinham-lhe dito que ia ficar «para sempre» na instituição e ele supunha que, depois, poderia voltar para casa … Outro filho, que Liliana Melo foi buscar à escola, fez questão de levar a mãe à sua sala de aulas, para a apresentar, orgulhosamente, aos seus colegas!

Nesta história há muitos vilões, nomeadamente o Estado português, alguma da sua justiça e alguma da sua Segurança Social que, embora exemplares em geral, neste caso, em vez de ajudarem uma família com necessidades, tudo fizeram para a destruir.

Também o foram, por omissão, os políticos, de esquerda ou de direita, que andam sempre a encher a boca com as causas sociais, mas depois nada fazem para resolver os casos concretos. Andam a brincar ao Robin dos Bosques, à frente das câmaras da televisão, exibem a sua indignação sempre que têm um microfone pela frente mas, depois, não mexem um dedo. Uma certa comunicação social, mais atenta às causas fracturantes do que às pessoas fracturadas, foi também cúmplice, pelo seu silêncio, quando era sua obrigação informar sobre estes casos de inadmissível prepotência estatal.

Heróis são a Liliana Melo e os seus filhos, finalmente reunidos na casa que nunca devia ter deixado de ser a sua. É o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos que, em acórdão recente, recomendou a reunificação de toda a família e condenou o Estado português, por este incrível atropelo dos mais elementares direitos fundamentais, obrigando-o também a uma pesada multa que, contudo, não paga o sofrimento desta família durante quatro longos anos. São as advogadas Paula Penha Gonçalves e Clotilde Almeida, que deram a esta mãe e aos seus filhos o apoio do seu muito saber e do seu imenso trabalho, sem outra recompensa que não seja o consolo de ver, de novo, a família unida. Foi também o jornalista José Manuel Fernandes que, numa exemplar reportagem, teve a coragem de denunciar este caso. Bem-hajam!





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