sábado, 30 de julho de 2016
Uma lei que não pode ser melhorada
Pedro Vaz Patto
No momento em que escrevo, o Parlamento acaba de aprovar uma nova versão do projecto que legaliza a maternidade de substituição. Para os proponentes, trata-se da resposta ao apelo do Presidente da República no sentido de «melhorar» a primeira versão dessa lei, suprindo algumas lacunas já anteriormente apontadas em dois pareceres do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (C.N.E.C.V.). Impõe-se afirmar, com vigor e clareza, que uma qualquer lei que legalize a maternidade de substituição não pode ser «melhorada», porque esta é uma prática intrinsecamente contrária à dignidade humana (e, assim, contrária ao disposto no artigo 67.º, n. 2, e), da Constituição portuguesa) e nenhum enquadramento jurídico poderá obviar a isso. Os problemas que pode suscitar nunca serão resolvidos de forma satisfatória e só a sua proibição em qualquer caso os afasta. Essa proibição vigora em muitos países e também é preconizada na recente Resolução do Parlamento Europeu 2015/2229 (N), de 17 de Dezembro de 2015, aprovada por larga maioria (e referida na mensagem do Presidente da República). O vigor e clareza dessa afirmação não provém apenas da área doutrinal em que me situo. Provém também de movimentos feministas de vários países (que confluem na plataforma internacional Stopsurrogacynow), os quais vêm denunciando essa prática como de exploração das mulheres mais vulneráveis, chegando a compará-la à escravatura. Essa legalização é apresentada com a marca de uma política «progressista», quando, noutros países, muitas são as vozes tidas por «progressistas» e «de esquerda» que a rejeitam («um retrocesso social» e «o novo domínio da alienação» – de acordo com um manifesto da Fundação Terra Nova, próxima do Partido Socialista francês).
É verdade que a lei aprovada veda a exploração comercial da prática, onde residiriam os maiores riscos de exploração das mulheres pobres. O legislador não pode, porém, ignorar a realidade sociológica e o risco de tal proibição ser torneada através de pagamentos ocultos ou em espécie. Só situações de grande carência económica levam mulheres a sujeitar-se a tão traumatizante experiência (não é por acaso que a prática se vem difundindo na Índia ou na Tailândia). De acordo com o manifesto feminista italiano Se non ora quando-Libere, «a ‘maternidade de substituição’ nunca é um acto de liberdade ou de amor, é sempre um acto de desespero». Neste contexto, a gratuidade do contrato pode representar uma forma de exploração ainda mais acentuada.
Mesmo que assim não seja em situações excepcionais (e nenhuma lei se destina a situações excepcionais, mas às que são regra), deve sublinhar-se, de qualquer modo, que a instrumentalização da pessoa (da criança e da mãe gestante), reduzida a objecto de um contrato e de um desejo de outrem, não deixa de verificar-se pelo facto de esse contrato ser gratuito. Também pode ser instrumentalizada a pessoa altruísta e desinteressada. O aproveitamento dessa generosidade para uma prática desumana será de igual modo censurável.
O recurso a amigas ou familiares (a maternidade de substituição de proximidade) pode originar ainda mais problemas, com a coexistência de duas figuras maternas «em concorrência». Quando há laços de parentesco, suscitam-se gravíssimas consequências que já foram designadas como «curto-circuito geracional»: a criança com uma mãe gestante que é, simultaneamente, também sua avó, ou também sua tia.
Também não colhe invocar o consentimento livre e consciente da mulher gestante. Porque em situações de grave carência e desespero, tal consentimento nunca será autêntico. E porque a dignidade humana tem uma dimensão objectiva e indisponível que impede a justificação das ofensas a essa dignidade pelo consentimento da vítima.
Por tudo isto, nem a referida Resolução do Parlamento Europeu, nem a referida plataforma feminista internacional, distinguem entre uma maternidade de substituição maligna e comercial e uma maternidade de substituição supostamente benigna e altruísta.
Com a legalização da maternidade de substituição, quer o filho, quer a mãe, são, pois, reduzidos a objecto de um contrato (seja ele oneroso ou não).
A mãe gestante não pode deixar de viver a gravidez como sua. O útero é inseparável do corpo e da pessoa, não é um alojamento temporário, ou um instrumento técnico. A mulher não é uma máquina incubadora. A gravidez não é uma actividade como qualquer outra; transforma a vida da mulher fisica, psicologica e moralmente. Envolve toda a pessoa da mulher, pessoa que não tem um corpo, é um corpo. A instrumentalização do corpo traduz-se na instrumentalização da pessoa.
Na maternidade de substituição, o abandono da criança é, não um evento inevitável que deva ser remediado através da adopção, mas uma consequência deliberadamente programada, institucionalizada pela lei, a qual veda a obrigação mais espontânea e natural que existe: a de assumir a vida que se gerou. Impor contratualmente uma obrigação de abandono do filho que se gerou é, como afirma a filósofa feminista francesa Sylviane Agacinsky (promotora da plataforma Collectif pour le respect de la personne), «violentar sentimentos humanos profundos e legítimos» e «ferir emoções humanas elementares».
Para limitar essa tão desumana imposição, há quem proponha (e há legislações que a consagram) a possibilidade de arrependimento da mulher gestante durante todo o período da gravidez, ou até algumas horas após o nascimento. Desse modo, pode dizer-se que serão frustradas as expectativas do casal beneficiário. A lei que acaba de ser aprovada não aponta nesse sentido. Faz prevalecer, pelo contrário, os interesses do casal beneficiário, o seu suposto direito ao filho «encomendado» e a rigidez fria da vinculação contratual (pacta sunt servanda), sobre o sofrimento da mãe gestante, votado à indiferença.
Compreende-se, assim, como a contratualização da gestação se traduz na instrumentalização da pessoa. Essa lógica de instrumentalização da pessoa acarreta, com frequência, a imposição de regras de conduta durante a gravidez nos domínios mais pessoais e íntimos. Sobre esta questão, pronuncia-se também Silvanne Agacisnky (in Le corps em miettes; Flamarion, 2013, pgs. 92 e 93):
«Pedir a uma mulher para estar grávida em substituição de outra significa concretamente que ela deve viver nove meses, vinte e quatro horas sobre vinte e quatro, abstraindo-se da sua própria existência corporal e moral. Deve transformar o seu corpo em instrumento biológico do desejo de outrem, em suma, deve viver ao serviço de outrem, retirando à sua existência qualquer significado para ela própria.»
Pretendendo colmatar uma das lacunas apontadas pelo C.N.E.C.V. e pelo Presidente da República, a lei agora aprovada proíbe a imposição desse tipo de regras. Mas tal proibição pode não ser suficiente para evitar a sua imposição na prática, pois só elas são coerentes com a motivação que preside ao contrato: a contratualização da gestação, sendo que esta envolve toda a pessoa e toda a vida da mulher.
O filho é tratado como objecto do contrato. Essa circunstância, por si só, ofende a sua dignidade. Não pode dizer-se que objecto do contrato é, antes, apenas uma prestação por parte da mulher gestante. O que pretendem, e o que move, os requerentes ou beneficiários não é apenas a gestação, mas a entrega da criança fruto dessa gestação.
Todos os contratos de maternidade de substituição envolvem um grave dano para a criança, que sofre o trauma do abandono, a quebra abrupta da intensa relação física, psíquica e afectiva (sobre que cada vez há mais informação científica) tecida com a mãe durante todo o período da gestação. A criança fica privada do saudável reconhecimento do corpo onde habitou na primeira etapa da sua existência. Nesta medida, a maternidade de substituição representa sempre a sobreposição do desejo dos requerentes ao bem da criança.
Mas a lógica da instrumentalização (ou «coisificação») do filho pode ir mais longe.
Outra das lacunas que a lei agora aprovada pretende colmatar diz respeito às situações em que vem a verificar-se malformação ou doenças do feto. São conhecidos casos de recusa, pelos requerentes, da criança recém-nascida portadora de deficiência, ou de exigência de prática de aborto do feto portador de deficiência. Não se trata de hipóteses académicas, mas de situações já ocorridas em vários países. A lei aprovada estipula apenas que o contrato deve contemplar a regulação desta eventual ocorrência, não excluindo, pois, que as partes possam acordar no sentido da obrigação da prática do aborto, sob pena de declinação de qualquer responsabilidade do casal beneficiário para com a criança nascida. Eis-nos perante a expressão máxima (em toda a sua crueza e crueldade) da lógica da «coisificação» do filho «encomendado» e da «cultura do descartável»: o «produto» rejeitado por «defeito de fabrico», pela falta da «qualidade» pretendida e contratada. O filho que não vale por si, mas porque (e na medida em que) corresponde a um desejo bem determinado. E eis-nos também perante a expressão máxima de insensibilidade perante o drama da mulher gestante, a quem se impõe a violação da mais espontânea e natural das obrigações (cuidar da vida que traz dentro de si), não apenas através do abandono do seu filho, mas (mais grave ainda) através da supressão da vida deste (o aborto já não como opção, mas como obrigação).
Em suma, uma qualquer lei que legalize a maternidade de substituição nunca pode ser «melhorada», porque, como afirmou a Associação dos Juristas Católicos em recente comunicado, «não é possível remediar o que não tem remédio», e «a proibição da maternidade de substituição é um imperativo da protecção da dignidade humana».
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