terça-feira, 7 de julho de 2015


O romantismo de uma família numerosa


Inês Teotónio Pereiraionline, 4 de Julho de 2015

Quando se tem crianças não é o número que importa, o que importa é mesmo o tamanho delas.

No outro dia pus a mão por baixo do banco do carro e encontrei dois bonecos da Playmobil, uma chucha, uma asa de um avião e quatro rodas de um carrinho. Tendo o meu carro sete bancos e duas cadeirinhas de criança, controlei a curiosidade e resolvi não pôr a mão por baixo de mais nada. No entanto, um cheiro estranho persistia e até eu, que dificilmente me vou abaixo com o que sai de dentro das fraldas, não consegui resistir. Saí do carro e, vasculhando debaixo de cada banco, tentei descobrir a origem do cheiro. Ganchos, uma meia de futebol, duas velas, a capa de um livro, mas nada com cheiro. Até que a minha mão tocou numa coisa mole e molhada: uma laranja em decomposição debaixo do sexto banco. Tentei tirá-la, a laranja desfazia-se em antibiótico perante a minha teimosia, mas acabei por conseguir.

Depois fui para casa. Entro sempre em casa a medo porque, invariavelmente, alguém me pisa, ou se atira ao meu pescoço, ou abraça a minha barriga e, invariavelmente, alguém me magoa. No Verão, com as sandálias, torna-se mais perigoso. Com os restos da laranja na mão, entrei. Três crianças correram na minha direcção e fizeram exactamente o que está descrito em cima. Equilibrei a laranja com mestria e consegui sorrir, fazendo crer que aquele era o momento mais feliz do dia e não o mais doloroso.

Falavam todos ao mesmo tempo, a televisão estava aos berros, o bebé atirava uma bola em todas as direcções e os mais velhos, deitados no sofá, nem se mexiam.

«Então? Que fizeram hoje?» Sorri. Não me lembro o que responderam porque entretanto o meu telemóvel tocou, alguém tirou a bola ao bebé e a berraria subiu de tom. Lembro-me que a segunda coisa que disse foi para se calarem, arrumarem a sala, darem a bola ao bebé para ele se calar, arrumarem a cozinha que estava um caos, calçarem os sapatos que estavam espalhados no meio da sala e baixarem o volume da televisão. A laranja ainda estava na minha mão, e apesar de ter como prioridade máxima chegar à casa de banho desde que tinha entrado no carro, não conseguia lá chegar.

O telemóvel continuava a tocar. Estupidamente, atendi: «Boa tarde, fala a Inês Pereira? Daqui é do jornal e queria saber o que votaria no referendo se fosse grega.» Entretanto, um estrondo: o bebé tinha deitado ao chão a gaveta dos talheres. «Espere, agora não posso.» Pedi que alguém, fosse quem fosse, arrumasse os talheres antes que o bebé pegasse num garfo. Ninguém podia porque estavam todos a recolher sapatos, a pôr a loiça na máquina e a arrumar a sala. O bebé pegou num garfo e fugiu a correr. Foram segundos de horror. Até que alguém o agarrou e recomeçou a choradeira.

Foi no meio do caos que alcancei a porta da casa de banho. Tranquei-me lá dentro. O telemóvel tocou outra vez, era outra vez sobre a Grécia. Respondi. Na paz da casa de banho, respondi sobre o referendo na Grécia. «Votava ‘sim’! Espere, eu estou habituada a votar ‘não’ nos referendos… ‘Sim’ é pela continuação das negociações, não é? Então ‘sim’, claro. O contrário seria o caos.»

Lá fora, no caos, as crianças discutiam sobre quem é que devia arrumar o quê, de quem era a culpa de o bebé ter apanhado o garfo e quem é que devia arrumar a gaveta dos talheres. O bebé, colado à porta, gritava pelo direito de ser pegado ao colo pela mãe.

Doía-me o pé da pisadela no momento em que entrei em casa.

Sobrevivi a este sofrimento durante duas horas, quando finalmente me sentei no sofá. Adormeci uns minutos depois, torta e de boca aberta como se tivesse sido apanhada pela lava de Pompeia e eternizada na minha miséria. Até que um grito me despertou novamente para a realidade. «O que é que uma laranja nojenta está a fazer na casa de banho?!» «Fui eu», respondi baixinho.

Não, quando se tem crianças não é o número que importa, o que importa é mesmo o tamanho delas.





Sem comentários: