terça-feira, 7 de abril de 2015
O último filho
Inês Teotónio Pereira, ionline, 4 de Abril de 2015
O meu último filho não tem medo de nada e só chora para reclamar direitos, colo, comida e menos regras. O seu choro é uma ordem. Comanda os irmãos e os pais apenas com o som do choro
Não interessa se é o primeiro, o segundo ou o terceiro. Aquilo que o marca é ser o último. Depois dele não há mais nenhum e o espaço que ele ocupa é ilimitado. Na tabela dos nascimentos o lugar cimeiro é o último. O último podia não ter nascido visto que não há mais ninguém depois dele. E esse vazio é o que faz dele uma relíquia, a última obra de arte.
Por ser o mais novo ou o único nasce para receber. Apenas isso. Por isso o último é mimado. Tem de ser mimado. Ele só dá se quiser porque ninguém lhe pede nada. Chega ter nascido. Será sempre o mais novo, o mais frágil e aquele que tem de ser sempre protegido. Pode ser forte, esperto, desenrascado, independente, seguro, bonito, ser grande e barrigudo, que isso não interessa nada. Será sempre um bebé desprotegido. Até pode ter bigode que será sempre assim, feito de porcelana da China dos pés à cabeça.
Os últimos são mimados por muita gente, incluindo os irmãos, ou principalmente pelos irmãos. E é isso que os torna invencíveis. O mundo não lhes mete medo porque entram nele com um exército altamente preparado ao seu serviço. Exclusivamente ao seu serviço. Os últimos têm tudo: o que precisam e o que não precisam. Têm atenção, têm mimo, têm quereres e têm o mundo a seus pés. São príncipes de um metro com poderes de imperadores. Nunca são malcriados; em vez disso são reguilas ou atrevidos. Também não são caprichosos, têm é muita personalidade. Raramente lhes chamam egoístas ou embirrentos; diz-se carinhosamente que têm o «seu feitio». Aos últimos não se culpa, desculpa-se.
O meu último filho não tem medo de nada e só chora para reclamar mais direitos, mais colo, mais comida ou menos regras. E o seu choro é uma ordem. Comanda os irmãos e os pais apenas com o som do choro. Ninguém aguenta ouvi-lo chorar, ninguém resiste ao seu beicinho e todos temos a missão de o deseducar. Todos o queremos deseducar pegando-lhe ao colo quando cai, abraçá-lo quando se entala numa porta ou mimá-lo quando se assusta porque partiu um prato. Também ninguém o condena quando ele despeja um balde de água suja no chão da cozinha ou quando entra sorrateiramente na casa de banho para lavar as mãos na retrete. Pelo contrário: tudo isto são gracinhas. A única coisa que se ambiciona é que ele encoste a cabecinha no nosso ombro. Nada mais.
O meu último filho tem como brincadeira favorita empoleirar-se em cima das mesas ou das escadas e ficar à espera que alguém o vá buscar. E ali fica, a rir e à espera do seu salvador no alto da sua segurança. Ele sabe que não cai porque haverá alguém para o segurar. E há. Há sempre alguém que lhe procura a chucha quando ele a perde, que o leva à rua a passear, que apanha as bolas que ele atira, que põe a tocar as suas músicas preferidas, que lhe ensina novas gracinhas ou que joga à apanhada com ele. Tem um ano e meio e com um ano meio já sabe mais das fragilidades da natureza humana e de chantagem emocional que muitos pais ou avós.
É por isso que o meu último filho é insuportável. Nenhum dos meus outros filhos foi tão insuportável como este. Mas ninguém se importa. Basta que ele sorria, faça mais uma gracinha ou dê um abraço para que tudo o resto deixe de ter importância. Ainda por cima faz uma covinha na bochecha esquerda e ri-se com os olhos. Sim, o meu último filho é insuportável, mas se eu soubesse o que sei hoje tinha educado todos os meus filhos como se fossem os últimos: sem stresse e sem a ânsia de os educar.
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