domingo, 28 de setembro de 2014


Onde estão as famílias?


Inês Teotónio Pereira, Jornal i, 27 de Setembro de 2014

O problema da família, a fatalíssima crise da família, é só um: a família eclipsou-se. Não é tida nem achada em tema nenhum

Quando se fala de crianças, de educação ou de idosos, o link automático direcciona-nos para o Estado ou para a escola. A família é raramente mencionada. Diz-se que a família, tal como os valores, está em crise. Diz-se que a família é um conceito dinâmico, e de tal forma dinâmico que até já se criou uma nova espécie, as novas famílias – como se não fosse tudo a mesmíssima coisa. Diz-se que é o Estado que deve educar as crianças através de programas curriculares herméticos, fechados e idênticos para todas as elas no conteúdo, na forma e no tempo. O Estado é a nossa grande família. Ao Estado cabe proteger os avós, educar as crianças, empregar os pais, integrar os imigrantes, travar os emigrantes, garantir a igualdade das mulheres, inverter da curva da natalidade e até melhorar os rankings internacionais do sucesso escolar. Às famílias cabe votar e pagar impostos.

O problema da família, a fatalíssima crise da família, é só um: a família eclipsou-se. Não é tida nem achada em tema nenhum e não quer ser tida nem achada em tema nenhum. Quando se fala de educação, fala-se de professores e da sua estabilidade profissional, e quando se fala das franjas mais vulneráveis da sociedade, como idosos, deficientes ou pobres, remete-se o problema para a segurança social. As associações de pais têm um centésimo da intervenção social na educação de qualquer sindicato de professores, assim como são os lares quem o Estado preferencialmente financia para acolherem os avós, e não as famílias que o deviam fazer. Raramente se fala da família e raramente se reclama o quer que seja da família, dos pais, dos tios, dos avós ou dos irmãos. A rede familiar foi substituída pela rede burocrática do Estado e a genealogia pelo direito administrativo.

Quando Rousseau pensou no contrato social, não imaginou que por aqui se fosse tão longe. Não imaginou que as famílias não reclamariam poder, deveres e direitos, e que não se organizassem como a célula-base de qualquer sociedade.

Hoje fala-se, e muito, de políticas de família – como se as políticas não fossem todas para as famílias, da saúde à educação, da economia à justiça –, mas é muito pouca a dinâmica das próprias famílias. Os nossos filhos não são só alunos, os avós não são apenas pensionistas, e o resto da população meros contribuintes. Mas, antes disso, cada um faz parte de uma família (nova ou velha) e é nessa família que se define e decide tudo o resto. Sim, as famílias estão em crise. Crise económica e crise de identidade. A primeira cabe ao Estado, em primeira instância, resolver, pagando as dívidas astronómicas que durante décadas acumulou e aliviando a carga fiscal que vai arrecadando para manter o nariz fora de água. A segunda crise, que não se resolve com programas de governo, é responsabilidade de cada família. A família é um grupo de pessoas com identidade própria que, dentro da sua dinâmica, educam, constroem, apoiam e sustentam um País. É das famílias que são feitos os países, e não apenas de indivíduos ligados aos Estados. Para que as famílias voltem a contar é preciso que as próprias famílias se tenham em conta e se considerem verdadeiros agentes políticos e sociais. Até lá, continuaremos a ter o Estado como pai e os verdadeiros pais como contribuintes.





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