sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Eutanásia:
A democracia assenta em chão firme,
não depende de uma mera opinião


José Maria C. S. André, Público, 22 de Julho de 2013

Cada vez que este jornal publica, com uma certa regularidade, os artigos de Laura Ferreira dos Santos a favor da eutanásia, fico perplexo. Muito havia a dizer, mas vou debater apenas o argumento da liberdade e da tolerância em abono da eutanásia (por exemplo, no artigo de 6 de Agosto de 2011).

Quando se diz que uma sociedade tolerante deve proporcionar o homicídio assistido a quem o pedir, invertem-se os dados da questão, porque isso não é um pedido de tolerância mas de colaboração: os defensores da eutanásia pretendem obrigar-nos a satisfazer o desejo de quem quer ser morto. Seria mais razoável que, em nome da tolerância, nos deixassem em paz.

Nos artigos referidos há uma objecção interessante, que aceito, à parte um pequeno sofisma: defender a inviolabilidade da vida humana equivale a impor uma determinada perspectiva sobre a verdade, excluindo outras. De facto, quando a sociedade toma posição em defesa da dignidade humana assume como verdade que o ser humano tem um valor intrínseco, não sujeito a transacção. No entanto, isso não é uma «determinada perspectiva sobre a verdade», é a própria verdade. Aliás, é um elemento de verdade absolutamente fundamental, sobre o qual assenta uma sociedade que se queira justa, livre e tolerante.

Uma sociedade tolerante não é aquela que aceita tudo. Não pode aceitar a guerra da Líbia, a instabilidade do Iraque, ou a violência da China... não aceita o inaceitável. Não derruba os pilares-base da vida social, nomeadamente o princípio de que a vida humana é inviolável. Esta verdade não é negociável, numa sociedade digna. Não é uma perspectiva acerca da verdade, que estejamos dispostos a trocar por qualquer outra.

Colaborar num homicídio, a pedido da vítima ou com qualquer outro pretexto, é contradizer a verdade fundacional de uma sociedade democrática e solidária. Por isso, introduzir a eutanásia é uma subversão tão grave da ordem social, em linha com aquelas contradições do slogan do Ministério da Verdade do inferno orwelliano: «Guerra é paz; liberdade é escravidão; ignorância é força».

Qualquer ordenamento jurídico, por mais bárbaro que seja, reconhece o valor de algumas vidas humanas, por razões de família, de dinheiro, ou de poder. A inovação característica da democracia é proclamar de que todas as pessoas, sem excepção, merecem esse respeito e de modo absoluto. A democracia não se fundamenta na afirmação de que todos têm êxito nos negócios, ou de que todos são saudáveis, ou têm notoriedade social. Nem sequer importa o que «têm», mas o que «são». A verdade fundacional da democracia é que o ser humano, pelo simples facto de o ser, possui uma respeitabilidade intocável.

O ponto de partida da democracia é que esta verdade ética não é uma opinião entre outras, mas uma verdade absoluta. No dia em que uma vida humana seja dispensável, quebrou-se o princípio e a vida humana passou a ser um valor relativo. Se uma sociedade aceitar que algumas pessoas sejam mortas (com um critério ou outro, o critério pouco importa), ninguém está a salvo, porque nenhum critério resvaladiço subsiste depois de se derrubar o princípio de que a vida humana é inviolável. Quem revogar este princípio intransponível não espere encontrar noutro lugar a justificação ética para uma democracia solidária.

Embora neste assunto da eutanásia esteja em desacordo com a minha colega da Universidade do Minho, isso não quer dizer que não tenha muita consideração por ela e não estejamos de acordo noutros temas.





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