José Maria C. S. André, Público, 22 de Julho de 2013
Cada vez que este jornal publica, com uma certa
regularidade, os artigos de Laura Ferreira dos Santos a favor da eutanásia,
fico perplexo. Muito havia a dizer, mas vou debater apenas o argumento da
liberdade e da tolerância em abono da eutanásia (por exemplo, no artigo de 6 de
Agosto de 2011).
Quando se diz que uma sociedade tolerante deve
proporcionar o homicídio assistido a quem o pedir, invertem-se os dados da
questão, porque isso não é um pedido de tolerância mas de colaboração: os
defensores da eutanásia pretendem obrigar-nos a satisfazer o desejo de quem
quer ser morto. Seria mais razoável que, em nome da tolerância, nos deixassem
em paz.
Nos artigos referidos há uma objecção
interessante, que aceito, à parte um pequeno sofisma: defender a
inviolabilidade da vida humana equivale a impor uma determinada perspectiva
sobre a verdade, excluindo outras. De facto, quando a sociedade toma posição em
defesa da dignidade humana assume como verdade que o ser humano tem um valor
intrínseco, não sujeito a transacção. No entanto, isso não é uma «determinada
perspectiva sobre a verdade», é a própria verdade. Aliás, é um elemento de
verdade absolutamente fundamental, sobre o qual assenta uma sociedade que se
queira justa, livre e tolerante.
Uma sociedade tolerante não é aquela que aceita
tudo. Não pode aceitar a guerra da Líbia, a instabilidade do Iraque, ou a
violência da China... não aceita o inaceitável. Não derruba os pilares-base da
vida social, nomeadamente o princípio de que a vida humana é inviolável. Esta
verdade não é negociável, numa sociedade digna. Não é uma perspectiva acerca da
verdade, que estejamos dispostos a trocar por qualquer outra.
Colaborar num homicídio, a pedido da vítima ou
com qualquer outro pretexto, é contradizer a verdade fundacional de uma
sociedade democrática e solidária. Por isso, introduzir a eutanásia é uma
subversão tão grave da ordem social, em linha com aquelas contradições do slogan
do Ministério da Verdade do inferno orwelliano: «Guerra é paz; liberdade é
escravidão; ignorância é força».
Qualquer ordenamento jurídico, por mais bárbaro
que seja, reconhece o valor de algumas vidas humanas, por razões de
família, de dinheiro, ou de poder. A inovação característica da democracia é
proclamar de que todas as pessoas, sem excepção, merecem esse respeito e
de modo absoluto. A democracia não se fundamenta na afirmação de que todos têm
êxito nos negócios, ou de que todos são saudáveis, ou têm notoriedade social.
Nem sequer importa o que «têm», mas o que «são». A verdade fundacional da
democracia é que o ser humano, pelo simples facto de o ser, possui uma
respeitabilidade intocável.
O ponto de partida da democracia é que esta
verdade ética não é uma opinião entre outras, mas uma verdade absoluta. No dia
em que uma vida humana seja dispensável, quebrou-se o princípio e a vida humana
passou a ser um valor relativo. Se uma sociedade aceitar que algumas pessoas
sejam mortas (com um critério ou outro, o critério pouco importa), ninguém está
a salvo, porque nenhum critério resvaladiço subsiste depois de se derrubar o
princípio de que a vida humana é inviolável. Quem revogar este princípio
intransponível não espere encontrar noutro lugar a justificação ética para uma
democracia solidária.
Embora neste assunto da eutanásia esteja em
desacordo com a minha colega da Universidade do Minho, isso não quer dizer que
não tenha muita consideração por ela e não estejamos de acordo noutros temas.
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