Pedro Vaz Patto
A questão da legalização da eutanásia está na ordem do dia e vem sendo
debatida nas páginas do Público.
Quase sempre se propõe a eutanásia como um recurso excepcional e
estritamente enquadrado, como corolário do respeito escrupuloso pela liberdade
de quem a pede. Que tal objectivo seja atingido, não resulta, porém, das
experiências dos países que legalizaram tal prática, como a Bélgica, que se
prepara agora para alargar tal legalização.
Há cerca de um ano, a propósito do décimo aniversário dessa legalização
na Bélgica (e a título de balanço), foi publicado um manifesto, Dez
anos de eutanásia, um feliz aniversário?, subscrito por médicos de
diferentes especialidades, mas também juristas, filósofos e teólogos de várias
religiões.
Aí se afirma que a legalização da eutanásia não envolve apenas o
respeito pela liberdade individual. Representa o aval da comunidade e do corpo
médico à opção em causa. A quebra de um interdito fundamental («não matar») que
estrutura, como sólido alicerce, a vida comunitária, não pode deixar de afectar
a confiança no seio das famílias, entre gerações e na comunidade em geral; e,
particularmente, a confiança no corpo médico. Fragiliza, por outro lado, os
mais vulneráveis, sujeitos a pressões, em grande medida inconscientes, que os
levam a sentir-se obrigados a pedir a eutanásia para não serem um peso para a
família e para a sociedade. O manifesto denuncia a efectiva verificação destas
consequências.
E confirma os receios de que a quebra desse interdito estruturante nunca
poderá ter efeitos limitados e contidos. Salienta, a este respeito, o facto de
ser a própria comissão destinada a controlar a aplicação da lei a reconhecer
que não tem meios para esse controlo (sendo que em dez anos nenhuma infracção
da lei foi detectada). Não é de esperar que os médicos se auto-denunciem quando
ultrapassem esses limites. A noção de «sofrimento insuportável» a que a lei
recorre (como as de outros países) é subjectiva e tem permitido estender o seu
campo de aplicação a sofrimentos psíquicos que não se enquadram na noção de «patologia
grave e incurável» a que a legalização supostamente se restringiria.
Suscitaram compreensível clamor, vários casos de prática da eutanásia a
coberto da lei belga em vigor: o de uma mulher, de 44 anos, que sofria de
anorexia nervosa e o de uma outra, de 64 anos, que sofria de depressão crónica
(doenças que podem ser tratadas); o dos irmãos gémeos Verbessen, surdos de
nascença em vias de ficar cegos («já não tinham por que viver» - afirmou o
médico que provocou a sua morte); ou a do professor de medicina De Duve, com 95
anos, que não era doente terminal, nem sofria de «dor insuportável».
E, mesmo assim, está agora em vias de ser aprovada, na Bélgica, a
extensão da legalização da eutanásia a casos de crianças (cuja maturidade para
decidir seja atestada por psicólogos) e de dementes (que tenham manifestado a
sua vontade anteriormente, no exercício das sua faculdades). Num e noutro caso,
o respeito pela «sacrossanta» liberdade de quem pede a eutanásia é posto em
segundo plano. Dá-se relevo à manifestação de vontade de uma criança, num
âmbito de absoluta irreversibilidade, quando não é dado esse relevo, por
incapacidade, em âmbitos de muito menor importância. Dá-se relevo, no caso de
pessoas dementes, a uma manifestação de vontade não actual, quando é sabido que
muitas vezes a vontade de uma pessoa se altera quando a doença progride e o
apego à vida vem ao de cima (ou seja: nunca pode haver a certeza de que fosse
essa a vontade real e actual da pessoa demente).
Também no caso de pessoas dementes, pode facilmente suceder que a
motivação do pedido não seja o previsível sofrimento dessas pessoas (nestes
casos, o sofrimento atingirá mais os familiares do que o próprio doente, por
este não se aperceber da sua doença), mas antes a vontade de não fazer recair
sobre esses familiares um fardo difícil de suportar (fardo que é inegável).
Pode, assim abrir-se a porta a uma morte provocada já não pela compaixão para com
o doente, mas para que as pessoas ao redor deste se livrem de um fardo difícil
de suportar.
Estas mesmas consequências (a dificuldade de controlo e a extensão da
eutanásia a situações de doentes incapazes de manifestar a sua vontade) já se
haviam notado na mais antiga experiência holandesa (país onde a prática
judiciária também já admite a eutanásia de crianças). O célebre relatório
Remmelink, de 1991, que evidenciou tais consequências, serviu de base ao livro
de Herbert Hendin Seduced by Death (W. W. Norton & Com.
Inc, 1997), que desempenhou um papel influente na rejeição da legalização da
eutanásia nos Estados Unidos.
O balanço destas experiências só confirma que quando se derruba um
alicerce, a derrocada total do edifício acabará por se verificar (abre-se
uma caixa de Pandora, caímos numa rampa deslizante).
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