Pedro Vaz Patto
Tem sido noticiada a intenção governativa de eliminar limites à investigação em células estaminais embrionárias humanas. Sobre os previsíveis resultados, no plano terapêutico, desse tipo de investigação, no confronto com a investigação em células estaminais adultas, muito haveria a dizer. Na verdade, até agora é este tipo de investigação (que não suscita os dilemas éticos suscitados pela investigação destruidora de embriões) a que tem dado mais imediatos e seguros resultados.
Mas a questão central e incontornável é, precisamente, de ordem ética e prende-se com a do estatuto do embrião humano: tem este a dignidade própria da pessoa humana, ou é um material manipulável; é ele um sujeito, ou um objecto?
Se ao embrião humano deve ser atribuída a dignidade de pessoa, não pode ele, de acordo com a lapidar máxima kantiana, ser reduzido a instrumento ao serviço de outros fins, mesmo os da investigação científica e do progresso da medicina. Os mais nobres fins não justificam meios em si mesmo eticamente reprováveis, como o da eliminação de vidas humanas inocentes.
O que é (ou quem é), então, o embrião humano?
A partir da concepção estamos perante um novo ser da espécie humana, com um património genético próprio (único e irrepetível, distinto da mãe e do pai), dotado de capacidade de evoluir, conservando sempre a mesma identidade (é sempre o mesmo até à idade adulta e à morte), através de um processo autónomo e coordenado, sem qualquer quebra de continuidade, de acordo com uma finalidade presente desde o início (um processo sumamente organizado e inteligente, pois, muito longe de um simples amontoado de células). No fundo, o embrião é aquilo que cada um de nós já foi e nenhum de nós teria atingido a fase da vida que hoje atravessa se não tivesse passado por essa fase inicial da vida, ou se tivesse sido impedido nessa fase tal processo de evolução natural.
Trata-se de um processo contínuo, sem saltos de qualidade. Isto significa que a dignidade da pessoa existe desde a concepção, não se adquire a partir de determinado momento, nem se vai adquirindo progressivamente. A dignidade própria da pessoa humana ou se tem, ou não se tem. Porque se trata de um processo contínuo, é arbitrário estabelecer qualquer fronteira (a actividade racional, a auto-suficiência, a capacidade de sentir dor ou de interagir socialmente) só a partir da qual se possa falar em dignidade de pessoa. Qualquer destas capacidades já existe em “germe” desde a concepção, vai sendo adquirida progressivamente e vai evoluindo antes e depois do nascimento. Algumas delas não existem na sua plenitude antes do nascimento, mas também não existem na sua plenitude até à idade adulta, tal como se podem perder na fase terminal da vida ou por motivo de doença. Por nenhum destes motivos a pessoa perde o seu estatuto de pessoa e a dignidade que lhe é própria. É o ser pessoa, e não uma sua qualquer capacidade, que funda tal dignidade.
A partir da concepção, não pode falar-se em “projecto de vida” ou “pessoa em potência”. A vida já existe, a pessoa já existe. Devemos falar, antes, em pessoa com potencialidades que ainda não se actualizaram, mas que se actualizarão no futuro se nada o impedir. E é assim não apenas no momento da concepção, também o é ao longo de toda a vida.
Não é a minúscula dimensão do embrião, a sua extrema debilidade ou a sua incapacidade de nos emocionar com a sua visibilidade que lhe retiram relevância ética. Para ele vale especialmente a advertência evangélica sobre o amor ao «mais pequeno dos meus irmãos». E também a regra de ouro comum a todas as religiões e correntes éticas laicas: «não faças aos outros o que não gostarias que te fizessem a ti» (a ti, que já fostes um embrião a quem ninguém impediu o natural desenvolvimento).
Muito grave seria se entre nós, a propósito da legislação proposta pelo governo, nem sequer encontrasse eco a discussão destas questões, que vêm ocupando os filósofos, juristas e políticos dos mais variados quadrantes. Seria grave no plano das prioridades éticas e no plano da legitimidade política democrática.
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