segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Alá, o Cardeal e os Sarilhos

ALÁ, O CARDEAL E OS SARILHOS

Há anos, uma velha amiga anunciou ir casar-se com um marroquino que conhecera pouco antes num resort em Agadir. Que me lembre, do seu círculo íntimo fui o único a apoiá-la, na pedestre presunção de que a vida era dela. Os restantes elementos do círculo discordavam em uníssono e alvoroço: a união com um muçulmano devoto seria uma previsível desgraça. Os avisos não vingaram. A minha amiga, que nunca professara qualquer fé, converteu-se ao Islão, casou-se e, durante largos meses, o casal, que ficou a residir por cá, frequentou regularmente a minha casa e não aparentava dissabores.

No máximo, o rapaz, Abdulah de sua graça, exibia certas idiossincrasias: embora falasse fluentemente uma data de línguas (incluindo alemão), não conseguia nomear um único escritor do seu país; embora parecesse em paz com o secularismo, fugia aos gritinhos e risos nervosos sempre que a televisão transmitia alguma coisa "ousada" (uma ocasião, um dvd com proezas pícaras de Serge Gainsbourg pô-lo a subir e descer as escadas sem cessar: "Mon Dieu!", berrava ele, as mãos na cabeça e um intrigante sorriso no rosto).

Não demorei a perceber o que se escondia por detrás dessas ligeiras excentricidades. Na privacidade do casamento, a minha amiga era espancada porque recusava engordar, porque queria ter animais de estimação ou porque se resignava à devassidão em seu redor. Na sequência do 11 de Setembro, Abdulah pendurou na sala um retrato (emoldurado) de Ben Laden. O casamento finou-se depressa.

Naturalmente, o exemplo é tão susceptível de generalização quanto os enlaces felizes desencantados pelos "media" a fim de desmentir os conselhos de D. José Policarpo, segundo o qual o casamento de cristãs com muçulmanos pode ser um "monte de sarilhos" que "nem Alá sabe onde acabam". E ainda que o estatuto legal das mulheres no Islão dê razão ao cardeal-patriarca, também é verdade que as suas afirmações parecem encomendadas para levantar de fúria o "multiculturalismo" em voga, que de facto se levantou.

O "multiculturalismo" prescreve a equivalência de todas as culturas e, logo, a impossibilidade de conflito entre valores distintos, sempre toleráveis, sempre fascinantes. O "multiculturalismo" só abre uma excepção na tolerância e no fascínio para abominar o exacto Ocidente que lhe permite existir. Por isso, as declarações de D. José Policarpo foram um maná para as brigadas da correcção política, que são uma espécie de braço armado do pensamento "multicultural" e, portanto, definem o que é e o que não é aceitável.

Não é aceitável, por exemplo, que uma alta figura da Igreja recomende cautela aos matrimónios inter-religiosos, mas aceita-se que imãs possessos preguem diariamente a extinção dos infiéis. Não é aceitável a influência da Igreja na sociedade, mas simpatiza-se com diversos estados estritamente submetidos ao Alcorão. Não é aceitável que a Igreja subalternize simbolicamente as mulheres e discrimine simbolicamente os homossexuais, mas ignora-se que a sharia reduza à animalidade as primeiras e execute os segundos. Não é aceitável que um responsável clerical revele eventuais indícios de xenofobia ou racismo, mas promovem-se insultos ao "estado hebraico" (sic) em manifestações e lamentos, implícitos ou explícitos, de que Hitler tivesse visto a sua obra interrompida. Não é aceitável impor limites à liberdade individual, mas impõe-se censura atenta aos críticos do "multiculturalismo", que sob o verniz ecuménico é um óbvio princípio
totalitário e um monte de sarilhos que Alá sabe onde acabam.

14 de Janeiro de 2009


Alberto Gonçalves
Sociólogo

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