domingo, 26 de janeiro de 2014

A co-adopção em uniões homossexuais


Pedro Vaz Patto


Alcance do projecto-lei em discussão

Foi aprovado na generalidade o projecto-lei n.º 278/XII, que permite a co-adopção em uniões homossexuais, ou seja, a adopção por uma pessoa casada com outra do mesmo sexo (ou a ela unida de facto) quando em relação a esta já esteja estabelecida a filiação, natural ou adoptiva.

Deve, desde já, salientar-se que a alteração legislativa proposta permitirá tornear facilmente a actual proibição da adopção conjunta por pares do mesmo sexo, deixando «entrar pela janela aquilo a que se fechou a porta»: basta que uma das pessoas adopte singularmente, ou (os casos mais frequentes na prática) que uma mulher recorra à procriação artificial num país que não a proíba, e depois o seu cônjuge, companheira ou companheiro, solicite a co-adopção.

Dizem os apoiantes do projecto que se trata apenas de proteger situações já existentes. Mas a função de uma qualquer lei não é reconhecer factos consumados ou regular situações já existentes, ela vigora para o futuro e abre (ou não) as portas a novas situações. Aqui, trata-se da possibilidade de alcançar, pela via indicada, alguns dos resultados a que chegaria através da legalização da adopção conjunta por pares homossexuais. É bom ter presente este facto para não cair na ilusão de que o projecto aprovado difere substancialmente de outros que foram rejeitados e que admitiam a adopção conjunta por pares do mesmo sexo. Trata-se de uma opção estratégica de alcançar o mesmo resultado de forma gradual e menos ostensiva.

Isso mesmo (que se trata de um passo a que logicamente se seguirá outro) resulta com clareza da exposição de motivos do projecto-lei em discussão, onde se afirma:

«Não se trata, portanto, para já, de revisitar temas como o do alargamento do instituto da adopção a todas as pessoas, solução que, a bem da verdade, tudo incluiria, mas de …» (sublinhado meu).

E nessa exposição de motivos também se faz referência explícita às duas situações acima referidas (a adopção singular e o recurso à procriação artificial), em relação às quais a co-adopção permitirá contornar a proibição da adopção conjunta. Um objectivo que nem está muito escondido, pois.

Deve também sublinhar-se, na mesma linha, que o projecto-lei serve, sobretudo, um propósito de afirmação ideológica de uma nova configuração da família (de acordo com a chamada ideologia do género), mais do que o de resolução pragmática de situações concretas de desprotecção jurídica.

A eventual desprotecção tem sido grandemente exagerada pelos proponentes e partidários da alteração legislativa proposta. Ao contrário do que por vezes quase se dá a entender, as crianças em questão, tendo já estabelecida a filiação quanto a um dos progenitores, em nada ficam limitadas nos seus direitos de acesso à saúde ou educação (a diferença que a este respeito pode verificar-se com a co-adopção é apenas a de que as decisões tomadas nesses âmbitos passam a ser partilhadas pelos dois progenitores). Tanto assim é que, actualmente, na maior parte dos casos de segundo casamento de uma pessoa viúva com filhos menores não se verifica a co-adopção pelo cônjuge.

Em caso de morte do progenitor, a criança não será certamente abandonada ou entregue a uma instituição (como parecem dar a entender os proponentes e partidários do projecto em discussão). O companheiro ou cônjuge do falecido poderá adoptar singularmente, ou poderá ser-lhe confiada a criança a outro título.

Não pode esquecer-se que há muitas formas de protecção da criança que não passam pela adopção, a qual supõe a ruptura do vínculo com o progenitor natural e a criação de um vínculo o mais possível semelhante ao da filiação natural.

Não pode esquecer-se que, de acordo com o artigo 1986º do Código Civil, a co-adopção supõe a ruptura com o progenitor natural, eventualmente já falecido, e com a sua família (os avós e tios, eventualmente ainda vivos), o que acentua o absoluto cancelamento da figura do progenitor natural (pai ou mãe), situação particularmente problemática quando o adoptante não for do mesmo sexo do falecido (não podendo, pois, substitui-lo simbolicamente).

A possibilidade de co-adopção proposta não é, pois, necessária para resolver questões concretas de desprotecção (há outras formas de o fazer) e, sobretudo, cria outros problemas, como veremos de seguida.

Abre a porta a situações em tudo equiparáveis às de adopção conjunta nos casos de adopção singular por parte de uma pessoa homossexual (não excluída pela legislação vigente) seguida da co-adopção pelo cônjuge, companheiro ou companheira, ou de recurso por uma mulher homossexual à procriação artificial num país estrangeiro, seguida da co-adopção pela companheira.

Neste último caso, a fraude à lei (a obtenção de um efeito não querido pelo legislador sem violação directa da lei, deixando que «entre pela janela aquilo a que se fechou a porta») é dupla: obtém-se o que o legislador não quis ao proibir a adopção conjunta por pares do mesmo sexo, e ao proibir a procriação artificial fora do âmbito patológico da infertilidade. Porque assim é, e porque é evidente que outro passo da estratégia global a que assistimos também passa pela abolição desta proibição, justifica-se que adiante se faça uma referência a esta outra proposta.

As objecções à adopção conjunta por pares homossexuais estendem-se, pois, ao projecto-lei em discussão (relativo à co-adopção) e, por isso, serão, de seguida, expostas tais objecções.

Por outro lado, mesmo para as situações de crianças filhas naturais de uma pessoa que vive numa união homossexual, a co-adopção causa sérios danos à construção da sua identidade psíquica, como veremos de seguida. Não é o mesmo, por um lado, ser reconhecido como filho de uma pessoa (pai ou mãe) que pode viver com outra do mesmo sexo e, por outro lado, ser reconhecido (com toda a força social e simbólica da lei) como filho de dois pais (e nenhuma mãe), ou de duas mães (e nenhum pai). Também analisaremos de seguida esta questão mais em profundidade.

As finalidades e o espírito
do instituto da adopção

O superior interesse da criança

Afirma-se recorrentemente que a legalização da adopção por pares do mesmo sexo é uma exigência do princípio da igualdade e não discriminação em função da orientação sexual.

No entanto, a adopção não pode ser encarada como direito dos candidatos, mas como direito da criança. Não são os candidatos à adopção que têm direito a adoptar, são as crianças órfãs ou abandonadas que têm o direito a ser ado­ptadas. Estas não podem ser objecto ou instrumento de direitos ou de reivindicações dos candidatos à adopção. São sujeitos de direitos, não objecto de direitos de outrem. O bem das crianças prevalece sempre sobre os interesses dos candidatos à adopção, mesmo que daí decorra um trata­mento diferenciado desses candidatos (porque não é um direito destes que está em causa), seja em razão da saúde, das capacidades económicas ou da orientação sexual.

É esse bem que justifica a inadmissibilidade da adopção por pares do mesmo sexo, porque essa adopção priva as crianças da figura paterna ou materna, quando ambas são imprescindíveis e insubstituíveis para o seu crescimento harmonioso.

O princípio da igualdade supõe o tratamento igual do que é igual e o tratamento diferente do que é diferente. E, na perspectiva do bem da criança, é diferente que seja educada por um pai e uma mãe ou por dois pais ou duas mães.

Sempre presidiu ao regime da adopção a ideia de que esta visa criar entre adoptantes e adoptado não quaisquer laços de afecto, mas aqueles que mais se aproximam dos que são próprios da filiação natural (ver artigo 1974º, n.º 1, b), do Código Civil). Por isso, exige-se um certo desnível etário entre adoptantes e adoptado, por exemplo. Entre avós e netos haverá o mais intenso dos afectos, mas não o relacionamento que é próprio da filiação (e, por isso, não podem aqueles adoptar estes). Entre duas pessoas de idades próximas poderá certamente haver relações de afecto, mas não o relacionamento próprio da filiação (e, por isso, não poderá uma delas adoptar a outra). A adopção visa, pois, criar entre adoptantes e adoptado laços que se aproximam o mais possível da filiação natural (de acordo com um velho brocardo: adoptio imitat natura). Ora, a filiação natural supõe sempre um pai e uma mãe.

Para além disso, qualquer criança adoptada enfrenta a problemática da aceitação da adopção («de onde venho?»; «quem são os meus pais?»), uma prova muito mais difícil de superar quando os adoptantes têm características radical­mente diferentes das dos pais naturais e habituais.

Criar «novas formas de família», suscitar experimentalismos sociais é o que há de mais contrário às finalidades da adopção. Esta pretende (na medida do possível) que a criança adoptada em nada se distinga da que vive com os progenitores naturais. É compreensível que muitos pais adoptantes procuram que seja pouco divulgado (designadamente junto de outras crianças) que o seu filho é adoptado: porque este não deve sentir-se diferente dos outros por isso. Ora, isso nunca será possível em caso de adopção por pares do mesmo sexo.

A importância das figuras materna e paterna, a impres­cindibilidade e insubstituibilidade de uma e outra, sempre foi salientada pelos estudos de psicologia do desenvolvimento infantil e só a polémica em torno da adopção por pares homossexuais deu origem a afirmações contrárias a tal ideia. O que sempre se afirmou em estudos de desenvolvimento da psicologia infantil (em «tempo não suspeito», sem qualquer relação com a polémica em causa) não pode agora ser ignorado. De resto, essas conclusões são confirmadas pela intuição e bom senso de qualquer pessoa.

Sempre se reconheceram os danos que podem acarretar a ausência da mãe e a ausência do pai no desenvolvimento de uma criança e um jovem. Sempre se salientou a necessidade de filhos de pais separados não perderem a ligação com o pai, porque a mãe, por muito competente que seja, nunca substitui o pai (e, por isso, se vem generalizando o regime de guarda conjunta).

Afirma, por exemplo, Trayce Hansen, psicóloga com prática cínica e forense na Califórnia[1]:

«O amor materno e o amor paterno, ainda que igualmente importantes, são qualitativamente distintos e dão lugar a relações paterno-filiais diferentes. Especificamente, a combinação do amor de mãe, que mostra uma devoção incondicional, e o amor de pai, que põe condições, resulta essencial para o crescimento de um filho. Qualquer destas formas de amor pode ser problemática sem a outra. Porque aquilo de que um filho necessita é de um equilíbrio complementar que proporcionam ambos os tipos de amor e relação».

Só os pais heterossexuais oferecem aos filhos a oportunidade de estabelecer relações com o progenitor do mesmo sexo e o de sexo contrário. As relações com ambos os sexos, na etapa inicial da vida fazem com que se torne mais fácil para um filho relacionar-se com ambos os sexos mais tarde. Para uma menina, isso significa que entenderá melhor e interagirá de forma mais adequada com o mundo masculino, e que se sentirá mais confortável no mundo das mulheres. E para o rapaz, a inversa será verdadeira. Ter uma relação com «o outro» (o progenitor do outro sexo) também incrementa a probabilidade de que um filho seja mais empático e menos narcisista. (…)

Um progenitor do sexo oposto ajuda o seu filho ou filha, conforme os casos, a controlar as sua próprias inclinações naturais, ensinando-lhe, com a palavra e de forma não verbal, o valor das tendências contrárias. Este ensino não só facilita a moderação, como amplia também o mundo de cada filho, ajudando-o a ver mais além do seu próprio e limitado ponto de vista.»

O crescimento da criança faz-se por etapas e essas etapas exigem umas mais da mãe e outras mais do pai.

A relação da criança com a mãe é essencial nos primeiros anos de vida (quem o poderá negar, e com base em que estudos?). A mãe tem uma maior sintonia com as delicadas necessidades dos seus filhos e entende melhor as suas emoções, sendo, por isso, mais adequada a sua capacidade de resposta a tais necessidades e emoções. A ausência da mãe nessa fase é traumática e pode gerar comportamentos anti-sociais no futuro.

Mas, da mesma forma que a relação com a mãe é essencial nos primeiros anos de vida, é essencial mais tarde a relação com o pai, para que a criança se «desapegue» da mãe e assim cresça como pessoa autó­noma. Não bastam os afectos para crescer, para tal são necessárias regras e autoridade (correctamente entendida, esta significa isso mesmo: ajudar a crescer). O papel da figura paterna acentua este aspecto. Em relação aos rapazes, o papel do pai ajuda-os a controlar os impulsos agressivos e sexuais (o que a mãe não pode fazer, porque não os experimenta da mesma forma). Não é por acaso que a ausência do pai está na ori­gem de muitos dos problemas de delinquência juvenil, por exemplo.

A importância dos papéis materno e paterno não decorre de uma rígida, tradicional e ultrapassada divisão de tarefas entre homem e mulher. A dualidade das dimensões mascu­lina e feminina da realidade humana vai muito para além dessa divisão tradicional, não se confunde com ela, mas existe e representa uma riqueza.

Dois pais ou duas mães não é, pois, o mesmo que um pai e uma mãe. Se assim, fosse, se fosse suficiente o afecto, porque deveriam ser dois (e não um), ou só dois, os progenitores? São dois porque um é diferente em relação ao outro, não é uma fotocópia do outro, completa e enriquece, com a sua especificidade, a pessoa e a tarefa do outro. Um dá uma riqueza que o outro não tem.

Afirma, nesta linha, o filósofo francês Xavier Lacroix[2] que «todos crescemos num duplo jogo de identificação e diferenciação, todos recebemos o amor segundo estas duas cores e estas duas vozes, masculina e feminina», pois nenhuma delas esgota a riqueza do humano. Assumir legalmente a filiação por duas pessoas do mesmo sexo é, de acordo com a filósofa francesa Sylviane Agacinsky[3] «negar violentamente a incompletude e finitude de cada um do sexos em relação ao outro, é simbolizar, aos olhos dos visados e de toda a sociedade, a negação da limitação de cada um dos sexos» e, consequentemente, a negação da riqueza da dualidade sexual.

Diz-se que interessa apenas a competência parental, e não o sexo dos progenitores, e que as pessoas homossexuais não são, nesse aspecto, inferiores às pessoas heterossexuais. Mas a mais competente das mães nunca poderá substituir um pai, tal como o mais competente dos pais nunca poderá substituir a mãe.

Nenhum de nós tem como referência dois progenitores indiferenciados (o progenitor A e o progenitor B, como passou a constar de documentos oficiais em países que legalizaram a adopção por pares do mesmo sexo), mas a sua mãe (que é única, não uma de entre uma série de mães B) e o seu pai (que é único, não um de entre uma série de pais B). E quem foi privado de alguma dessas referências não deixa de lamentar profundamente esse facto.

Também há quem alegue que a criança educada por dois pais ou duas mães não deixa de manter relacionamentos com pessoas de sexo diferente do dos progenitores (avós, tios, professores, etc.). Mas o relacionamento com o pai e a mãe é único e insubstituível (sabe-o bem quem passa pela trágica experiência da perda de um deles). Traduz-se numa presença constante e marcante no plano da construção da identidade. De modo algum a ausência da mãe (designadamente na fase inicial da vida) pode ser suprida pelo relacionamento com outras mulheres. De modo algum a ausência do pai (designadamente em caso de separação dos progenitores, ou na fase da adolescência) pode ser suprida pelo relacionamento com outros homens. Se assim fosse, poucos danos teria a institucionalização de crianças (danos tantas vezes invocados pelos partidários da adopção por pares do mesmo sexo), quando esta a priva do relacionamento com um pai e uma mãe únicos e irrepetíveis, sem a privar necessariamente do relacionamento com pessoas de ambos os sexos.

Também se alega com frequência que há crianças educadas (e bem educadas) por um só progenitor. É verdade que muitas crianças são educadas por um só progenitor. Mas essa não é a situação ideal, como, mais do que quaisquer outras pessoas, sabem os progenitores que involuntariamente se veem nessa situação. De qualquer modo, também serão diferentes a situação de uma criança educada só por uma mãe e a situação de uma criança edu­cada por duas mães, com o que isto significa de quebra da relação única e irrepetível com a mãe («mãe só há uma»).

Isso mesmo pode responder-se à alegação de que se a lei vigente não obsta à adopção singular por uma pessoa homossexual, não se vê por que deverá obstar à adopção conjunta por pares homossexuais (ou à co-adopção). Na perspectiva do bem da criança, pode sempre dizer-se que a adopção conjunta (por um pai e uma mãe) é preferível à adopção singular (independentemente da orientação sexual do adoptante). E, por outro lado, é diferente ser reconhecido como filho de um pai ou de uma mãe (independentemente da orientação sexual destes) e ser reconhecido como filho de dois pais ou duas mães. Esta é uma questão que não se coloca na adopção singular, mas se coloca na adopção conjunta e na co-adopção (como veremos melhor de seguida).

Uma última questão deve ser salientada.

Independentemente do dado objectivo da necessidade de um pai e uma mãe para o crescimento harmonioso da criança adoptada, se esta for adoptada por pares do mesmo sexo poderá ser encarada com estranheza pelas outras crianças e pela sociedade em geral, poderá ser marginalizada ou estigmatizada. As pessoas que assumem publicamente a sua homossexualidade assumem as consequências negativas (eventualmente injustas) que daí possam advir no plano da sua imagem social. Estão no seu direito de o fazer. Mas não têm o direito de forçar crianças a sofrer consequências desse tipo. As crianças não podem ser transformadas em bandeiras de reivindicações das pessoas homossexuais. Seria uma forma de as instrumentalizar, e o instituto da adopção não pode servir para isso.

Pessoas que justamente denunciam a homofobia (no sentido do desrespeito, discriminação e marginalização das pessoas homossexuais) ainda presente na nossa sociedade parecem esquecer-se desse fenómeno quando reivindicam o pretenso direito de adopção por pares homossexuais. E muitas vezes até invocam a naturalidade com que são encaradas nas escolas e outros ambientes crianças educadas em uniões homossexuais, que a todos se apresentam como tendo dois pais ou duas mães. Mas isso significaria que a homofobia já tinha desaparecido da nossa sociedade, o que essas mesmas pessoas recusam categoricamente para outros efeitos.

Este dano para a criança também é agravado com a co-adopção. Apresentar-se como filho de uma pessoa que vive com outra do mesmo sexo (num relacionamento cuja natureza homossexual até poderá ser deixada ao âmbito da privacidade) é uma coisa, apresentar-se (com a dimensão pública do registo civil) como filho de dois pais ou duas mães é, no plano do eventual estigma social (que agora analisamos, mas também de outros, que adiante analisaremos), outra.

Também se diz, a este respeito, que é a criança que, nestes casos, já considera ter duas mães, ou dois pais, limitando-se o registo a consagrar isso mesmo, uma realidade já existente. No entanto, e como é óbvio, nunca é a criança que espontaneamente passa a considerar como mãe a companheira da mãe biológica (ou adoptiva), ou como pai o companheiro do pai biológico (ou adoptivo). Ela fá-lo, obviamente, porque assim foi ensinada. Ninguém lhe perguntou a opinião e ninguém lhe deu alternativa.

Aliás, o particular cuidado com o bem da criança que exige qualquer decisão (legislativa ou judicial) em matéria de adopção, a sempre aconselhável precaução, e o objectivo de proporcionar à criança uma família igual às outras (fora de qualquer experimentalismo social), tudo isso tem especial justificação precisamente porque se trata de uma decisão de adultos em regra (salvo o caso de crianças maiores de catorze anos, de acordo como disposto no artigo 1981º, n.º 1, a), do Código Civil) sem o consentimento da criança visada.

Em suma, e regressando à questão inicial da exigência da igualdade, não pode em nome da igualdade dos adultos candidatos à adopção (igualdade em função da orientação sexual) originar-se uma desigualdade das crianças adoptadas (em função das quais é concebido o instituto da adopção): desigualdade entre, por um lado, as crianças que são educadas por um pai e uma mãe, e, por outro lado, as crianças que, deliberada e intencionalmente, são privadas de uma dessas insubstituíveis figuras.

Os danos da co-adopção
em uniões homossexuais
na perspectiva do bem da criança

Já acima se salientou que o projecto-lei em discussão permitirá contornar, também numa perspectiva de futuro, a proibição da adopção conjunta por pares homossexuais. Não se trata, pois, e apenas, ao contrário do que vem sendo salientado por proponentes e partidários desse projecto, de dar protecção jurídica a situações já existentes (até porque, como já vimos, essa protecção nem sempre é necessária, ou pode ser obtida de outra forma).

Mas mesmo para situações já existentes de crianças filhas naturais de uma pessoa que vive numa união homossexual, a co-adopção causa sérios danos à construção da sua identidade psíquica. Não é o mesmo ser reconhecido como filho de uma pessoa (pai ou mãe) que pode viver com outra do mesmo sexo e ser reconhecido (com toda a força social e simbólica da lei e do registo civil) como filho de dois pais (e nenhuma mãe), ou de duas mães (e nenhum pai).

Para a construção dessa identidade, a criança necessita sempre de um pai e de uma mãe, mesmo que algum destes exista apenas na sua memória ou na sua imaginação, exista apenas no plano da sua representação mental. Mas a eliminação legal de uma dessas duas figuras, com o reconhecimento de dois pais ou duas mães, vem obstaculizar, artificial e violentamente, a possibilidade dessa  representação mental.

O pedopsiquiatra e psicanalista françês Christian Flavigny (ouvido pela Assembleia Nacional francesa a propósito da legalização do casamento e adopção homossexuais) salienta (em Je veux papa et maman – «père-et-mère» congédiés par la loi, Salvator, 2013) como a identidade da criança se constrói a partir da noção de que foi gerada pela união entre o pai e a mãe. Isso é possível quando ela é adoptada por um homem e uma mulher, que sempre poderiam ser seus pais biológicos, mas nunca quando é adoptada por duas pessoas do mesmo sexo, ou co-adoptada por uma pessoa do mesmo sexo do progenitor, que nunca poderiam ser seus pais biológicos, como ela sabe. Neste caso, a adopção serve de ficção legal falsificadora e geradora de uma confusão prejudicial à construção dessa identidade. Convenhamos que será difícil explicar a essa criança (numa nova versão da «história da cegonha») como é que na sua origem pode estar uma relação entre pessoas do mesmo sexo…

Vejamos mais em profundidade o que afirma Christian Flavigny
na obra referida:

A questão da sua origem inquieta a criança desde muito cedo, não como questão técnica, mas como questão existencial. «Porque é que eu estou aqui? Será que eu sou uma boa resposta àqueles que me trouxeram ao mundo? Ele orienta a sua busca para a diferença de sexos dos seus progenitores, em relação à qual ele sabe ser a chave. É a chave afectiva que lhe interessa; como é que a diferença dos sexos suscitou a atracção entre eles? Esta atracção explica a sua vinda ao mundo; a questão agita o seu despertar afectivo (…) (pg. 48)

Quando a criança vive num ambiente homossexual o sentimento dos adultos e a vida afectiva da criança separam-se; separam-se porque a vida afectiva homossexual é alheia à geração. A criança sabe bem que a geração entre pessoas do mesmo sexo é inconcebível (ao contrário da geração entre pais adoptivos de sexo diferente). «É, então, pedido ao progenitor um esforço de clarificação afectiva no interesse do seu filho; se o seu companheiro, ou companheira, de vida homossexual não embarcam no estatuto de segundo progenitor, mesmo que desempenhem o mais precioso dos papéis educativos, então a criança pode orientar-se na sua situação e não a considerar consequência de um erro por si cometido, ou um defeito que o tenha atingido. Aí reside o essencial para a sua vida psíquica; se assim não for, se o progenitor mistura a ligação ao filho com a sua vida afectiva homossexual, essa orientação complica-se, a situação da criança baralha-se. E deve acrescentar-se o seguinte: o carácter desastroso para a criança decorrerá sobretudo da pretensão das leis de descarregar sobre ela esta baralhação, esta confusão deliberada da vida afectiva dos adultos que não está na origem da geração e da ligação filial da criança; assim se opera uma acção funesta para com ela» (pg. 65)

«Toda a criança focaliza a vinda ao mundo das crianças na união pai-mãe, toda a criança sabe que a união homem-mulher conduz à vinda ao mundo das crianças, que a geração é menos uma noção biológica do que psicológica e afectiva. Reclamar a integração do companheiro ou companheira de vida homossexual enquanto segundo progenitor, é, portanto, forçar pela via jurídica o que não deriva da vida afectiva.» (pg. 87)

«Se as leis tentam fazer avalizar o inconcebível, elas frustram a reflexão da criança através de uma legalização artificial: isso é uma placagem filiativa. Legalizar o segundo progenitor em união homossexual, é um truque legislativo para satisfazer os adultos; a criança em questão terá, por causa disso, a sua vida psíquica complicada. É impor-lhe que acredite no inconcebível; a legalização de uma falsidade que há-de ser uma armadilha para essa criança.» (pg. 90)

«A questão não é que uma pessoa homossexual eduque uma ou mais crianças, é impedir qualquer confusão para a criança envolvida; que um companheiro ou uma companheira homossexual sejam considerados como um segundo progenitor, reclamação das associações, falsificaria o vínculo de filiação. É fundamental para a criança envolvida numa vida relacional dos adultos sem a união pai-mãe, que permaneçam distintos a sua vida afectiva (homossexual, ou ausente, etc.) e o vínculo filial com a sua mãe; mais raramente é o seu pai, mas a questão é a mesma. Infringir isso através de novas leis introduziria uma modificação da natureza da adopção; ela é concebida como uma forma de geração credível, que permite à criança estabelecer a sua razão de ser a partir da sua família adoptiva. Abri-la àqueles e àquelas cuja união coloca num beco sem saída a geração é alterar esse seu princípio básico.» (pg. 96).

Assim, e em conclusão, independentemente de o projecto-lei em discussão abrir as portas a resultados equiparáveis aos que resultariam da eliminação da proibição da adopção conjunta, mesmo para as situações já existentes de crianças com filiação estabelecida em relação a um dos progenitores que vive numa união homossexual, a co-adopção, longe de beneficiar essas crianças, para elas acarreta graves danos. Danos que afectam o núcleo essencial do seu direito à identidade pessoal (artigo 26.º, n.º 1, da Constituição da República).

Consenso científico?

Já acima se salientou que a importância de uma mãe e de um pai sempre foi afirmada pelos estudos de psicologia do desenvolvimento infantil e só a polémica em torno da adopção por pares homossexuais deu origem a afirmações contrárias a tal ideia.

Mas não pode ignorar-se a recorrente alusão a estudos que alegadamente comprovam que as crianças educadas por pares homossexuais não revelam diferenças ou danos psicológicos particulares em relação a outras crianças. A American Psychological Association assumiu tal posição com base numa compilação desses estudos efectuada em 2005. Há quem fale, por isso, em «consenso científico» a respeito desta questão.

Pode, porém, e antes de mais, ser contestada a metodologia usada em muitos desses estudos, tal como a conclusão que deles se retira.

As razões dessa contestação têm a ver com a pouca representatividade dos números; o facto de os estudos em causa incidirem, sobretudo, em crianças com laços de filiação biológica a um dos membros do «casal» (o que não deixa de ser, nalguns aspectos, diferente de uma adopção conjunta); o facto de se basearem na comparação entre crianças educadas por pares de lésbicas, por um lado, e crianças a cargo de mães celibatárias heterossexuais, mas sempre na ausência do pai, por outro lado; o facto de se fazer a comparação entre, por um lado, um grupo de pessoas homossexuais de nível social e cultural predominantemente superior ao da população em geral e, por outro lado, um grupo de pessoas heterossexuais representativo da população em geral; o facto de as consequências a mais largo prazo ainda não terem sido estudadas; o facto de os casos serem seleccionados entre militantes dos direitos dos homossexuais, e não de forma aleatória, e de os dados recolhidos assentarem, em grande medida, nas declarações destes;[4] e o facto de os entrevistados homossexuais conhecerem a agenda política subjacente ao estudo.[5]

Vários desses estudos, baseados nas declarações dos «progenitores» homossexuais, concluem, até, pela vantagem para as crianças, do comportamento homossexual por eles assumido, o que naturalmente suscita suspeitas a respeito da objectividade e imparcialidade desses estudos.

Um estudo que não enferma desses vícios (pela sua extensão, por não conter distorções de níveis sociais e culturais dos entrevistados, por se basear em declarações de jovens adultos educados por pares homossexuais, por comparar estas situações com as de famílias heterossexuais compostas por um pai e uma mãe não separados), dirigido pelo professor da Universidade do Texas Mark Regnerous,[6] demonstra o contrário. Em quinze de entre quarenta parâmetros de bem-estar emotivo e relacional, os filhos educados por casais heterossexuais compostos por um pai e uma mãe não separados apresentam vantagens em relação a crianças educadas por pares homossexuais.

Que não se verifica alguma espécie de «consenso científico» resulta bem evidente, por exemplo, da discussão desta questão ocorrida recentemente em França. Na Assembleia Nacional foram ouvidos psiquiatras, psicólogos e psicanalistas com opiniões radicalmente diferentes.[7] Vários especialistas nas áreas da pediatria, da psicologia e da pedopsiquiatria subscreveram o manifesto Ne touchez pas papa et maman, publicado no Le Monde,  de oposição à adopção por pares homossexuais.[8]

Numa situação em que se dividem os peritos, deve reger o princípio da precaução mais vale prevenir do que remediar»; há que «jogar pelo seguro»): porque há-de prevalecer sempre o bem das crianças candidatas à adopção e porque estas (que muitas vezes já sofreram suficientes traumas e privações) não podem ser «cobaias» e objectos de experiências de resultados incertos e arriscados.

Não pode esquecer-se que temos em confronto, de um lado, uma experiência de milénios no âmbito das culturas mais variadas (uma experiência que demonstra que o pai e a mãe biológicos são, em regra, quem de forma mais adequada educa os filhos) e, do outro lado, uma experiência limitada no número de pessoas envolvidas, no espaço e no tempo.

Uma última observação se impõe.

Quando se invoca o pretenso «consenso científico», parece que se quer, em nome de um cientismo dogmático, encerrar o debate, como se a Americam Psychologial Association impedisse as sociedades e os parlamentos de todo o mundo, de divergir da sua opinião. Ora, não podem ser canceladas as dimensões antropológica, ética, política e jurídica da questão. Afirma, a este respeito, Xavier Lacroix (in La confusion…, cit, pg. 117 e 118): «Os desafios da paternidade, como os da maternidade, tal como a noção de saúde e de bem-estar, não relevam apenas do âmbito da verificação; relevam da ética, isto é, da preocupação pelo crescimento do humano. É, de qualquer modo, paradoxal, aplicar métodos médicos a questões fundamentais. Refugiar-se por detrás da aparente objectividade do quantitativo é evitar colocar as questões do sentido e do valor. Há aí uma opção deliberada segundo a qual qualquer avaliação moral, qualquer julgamento normativo, surgem como literalmente insuportáveis»

A adopção e a institucionalização das crianças

É também recorrente a alegação de que a adopção por pares homossexuais será preferível à institucionalização de crianças, desta forma privadas do precioso afecto de uma família.

É enganoso apresentar a adopção por pares homosse­xuais como uma solução para a institucionalização de crian­ças, como se fosse essa possibilidade a solução para «esva­ziar» as instituições que recolhem crianças abandonadas ou maltratadas. Não há falta de casais heterossexuais candidatos à adopção e os pares homossexuais candidatos à adopção são em número muito pouco significativo (bastante inferior ao do próprio universo dos pares homossexuais).

O pro­blema da institucionalização de crianças poderia ser debe­lado, não com a abertura à adopção por pares homosse­xuais, mas com o esforço de superar a selectividade revelada pelas intenções de muitos dos candidatos a adoptantes, que pretendem apenas a adopção de crianças recém-nascidas, saudáveis e da mesma raça que eles. Esse esforço passa por uma maior generosidade dos candidatos, mas também por mais apoios a estes. Nada tem a ver com a adopção por pares homossexuais.

A necessidade de evitar a institucionalização de crianças não pode levar a prescindir da exigência dos requisitos da adopção, como se a adopção em quaisquer condições fosse sempre preferível à institucionalização de crianças. A adopção não pode ser apenas um mal menor para a criança, tem de ser um bem para ela. As crianças mais problemáticas, que mais privações sofreram e sofrem, carecem, ainda mais do que as outras, de um crescimento harmonioso e equilibrado, para o que são importantes um pai e uma mãe.

De qualquer modo, a reivindicação da possibilidade de adopção por pares homossexuais nunca é apresentada como um último recurso para evitar a institucionalização de crianças, a considerar apenas quando a adopção por casais heterossexuais não fosse possível. É sempre apresentada como um direito das pessoas em uniões homossexuais em pé de igualdade com os casais heterossexuais. Assim, de acordo com essa reivindicação, nunca seria possível, na adopção de uma criança, com o fun­damento de que tal seria por si só melhor para ela, dar prefe­rência a um casal formado por um pai e uma mãe em relação a uma união formada por dois pais ou duas mães.

Jurisprudência do Tribunal Europeu
dos Direitos do Homem

Tem sido recentemente invocado, com insistência, em apoio da possibilidade de co-adopção em uniões homossexuais, o acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem proferido no caso X e outros contra a Áustria (1901/07)[9], onde se considerou contrário à Convenção Europeia dos Direitos do Homem o regime austríaco que, em matéria de co-adopção, distingue as situações de uniões de sexo diferente e uniões do mesmo sexo, e em cuja fundamentação se faz uma referência expressa a Portugal como um dos países onde vigora o mesmo tipo de discriminação alegadamente contrária a tal Convenção.

Deve, porém considerar-se o seguinte.

O acórdão em questão produz efeitos apenas no caso concreto nele apreciado e não corresponde a uma jurisprudência uniforme. Contém sete votos de vencido (contra nove favoráveis), sendo particular motivo de divergência o facto de a co-adopção aí em causa, pela companheira da mãe biológica, fazer cessar os vínculos com o pai biológico, que está vivo e nunca deixou de cumprir os seus deveres de alimentos para com o filho (situação que não encontraria cobertura no regime proposto pelo projecto-lei em apreço, que exclui a co-adopção quando estão vivos ambos os progenitores naturais).

O acórdão não corresponde a uma jurisprudência uniforme porque podem ser invocados outros em sentido contrário. Assim, o acórdão, também recente (de 15 de Março de 2012) proferido no caso Gas Dubois contra a França (25951/07).[10] Neste, o Tribunal não considerou contrário à Convenção Europeia dos Direitos do Homem o regime, então vigente em França, que negou a possibilidade de co-adopção à companheira de uma mulher que havia recorrido à procriação artificial na Bélgica (sendo que tal recurso não era admitido pela lei francesa). Uma situação semelhante a outras, já acima referidas, não permitidas pela lei portuguesa vigente e a que o projecto-lei em apreço abre as portas, como vimos.

Em suma, também não foi o acórdão proferido no caso X e outros contra Áustria que encerrou este debate.

O regime da procriação artificial,
o próximo passo?

Com acima se salientou, o projecto-lei em apreço abre a porta à possibilidade de recurso por uma mulher homossexual à procriação artificial num país estrangeiro onde tal seja legal, seguido da co-adopção pela companheira. Neste caso, a fraude à lei (a obtenção de um efeito não querido pelo legislador sem violação directa da lei, deixando que «entre pela janela aquilo a que se fechou a porta») é dupla: obtém-se o que o legislador não quis ao proibir a adopção conjunta por pares do mesmo sexo, e ao proibir a procriação artificial fora do âmbito patológico da infertilidade. Porque assim é, e porque é evidente que outro passo da estratégia global a que assistimos também passa pela abolição desta proibição, justifica-se que se faça uma referência a esta proposta.

Já foram apresentados entre nós projectos-lei de alteração da regulação da procriação medicamente assistida, no sentido de garantir o acesso a essa técnica a mulheres sós ou numa relação homossexual, independente do diagnóstico de infertilidade. Essa proposta chegou a ser saudada por representar uma quebra da «desigualdade ancestral que reduz as mulheres a apêndices dos homens»,[11] isto é, a que exige necessariamente o contributo destes para a procriação.

O alcance antropológico e ético da alteração proposta merece atenção e aprofundamento.

Na verdade, não se verifica uma desigualdade a este respeito. A natureza colocou, neste aspecto, homens e mulheres em estrito pé de igualdade: as mulheres não procriam sem os homens, mas os homens também não procriam sem as mulheres. Ninguém é mãe sozinha e ninguém é pai sozinho. Não se trata de um desígnio a corrigir ou anular, como se não tivesse sentido. Cada um dos sexos não pode deixar de reconhecer, assim, a importância do outro. Assim se exprime a estrutural relacionalidade da pessoa humana, que se realiza na comunhão com o outro. Essa comunhão está na origem da vida a partir da unidade da diversidade mais elementar: a que distingue homens e mulheres. Da riqueza da dualidade sexual nasce a vida. Associar a geração da vida à comunhão e ao amor (a vida é fruto do amor e o do amor nasce a vida), e à riqueza da dualidade sexual, não é um «engano» da natureza, mas um desígnio maravilhoso a aceitar e acolher.

A alteração proposta pretende consagrar uma visão radicalmente diferente: a procriação como instrumento de realização de um projecto individual, e não relacional. O filho tende, assim, muito mais, a ser encarado como espelho do único progenitor, e já não como dom a acolher na sua alteridade e unicidade. Passa a ser visto como objecto de um direito que se reivindica. É o «direito à parentalidade» que está em jogo – afirma-se em defesa da proposta em questão.

A procriação medicamente assistida tem sido encarada, à luz da lei vigente (que não deixa de ser também merecedora de críticas, por outras razões) como forma de suprir a infertilidade, não como simples alternativa à procriação natural (ver artigo 4.º da Lei n.º 32/2006, de 26 de Julho). Não é (como, num plano semelhante, não o é a adopção) um instrumento de «experimentalismo social» ou de «engenharia social» ao serviço de «novas formas de família». A criança gerada através de procriação medicamente assistida, como a criança adoptada, tem o direito a uma família como as outras, a uma família tanto quanto possível próxima da que tem origem na procriação natural.

Não se trata de impor um modelo de família ou uma forma de encarar a maternidade. Trata-se de dar primazia ao bem do filho, que não pode ser coisificado como objecto de um direito. Não há um direito ao filho; o filho é um dom. O bem do filho exige que ele seja fruto de uma relação, e não de um projecto individual. E exige que ele não seja intencionalmente privado de uma mãe ou de um pai. É ele que tem direito, não tanto a um progenitor indiferenciado (como pretende a ideologia do género, ao pretender que se fale em «parentalidade»), mas a uma mãe e a um pai, por todas as razões acima indicadas.

O que se propõe é que da procriação artificial nasçam crianças sem pai (sempre haverá um pai genético, necessariamente anónimo, mas apenas isso), já não por acidente inevitável, mas de forma intencional e programada.

O projecto-lei em apreço, não sendo relativo ao regime da procriação artificial, vem, por via indireta e como vimos, facilitar e incentivar o recurso, (ainda) proibido à face da legislação portuguesa, a tais técnicas fora do âmbito do objectivo de suprimento de situações patológicas de infertilidade. Tais técnicas deixam de ser (contra o que pretende a lei vigente – ver o referido artigo 4.º da Lei n.º 32/2006) um método subsidiário de procriação e passam a ser um método alternativo de procriação.

Numa fase seguinte, pretender-se-á que homens homossexuais possam recorrer à maternidade de substituição para que nasçam crianças sem mãe (ou com uma mãe a quem é, de forma violenta e desumana, negada a maternidade por imposição contratual e legal). Ainda não foram apresentados em Portugal projectos nesse sentido (foram apenas no sentido de por essa via ser suprida uma situação patológica de infertilidade), mas tal passo já foi dado noutros países.

Todos estes passos vão no sentido da instrumentalização do filho como objecto de um pretenso «direito à parentalidade». O que contraria o princípio da dignidade da pessoa humana em que assenta a República portuguesa (artigo 1.º da Constituição).


[1] In www. mercatornet.com, 2/6/2009.
[2] In Nouvelle Cité, n.º 560, Março-Abril 2013, pg. 25.
[3] In L´Osservatore Romano, 4-5/2/2013.
[4] Afirma a propósito Xavier Lacroix (in La confusion des genres – Réponses à certaines demandes homosexuelles sur le mariage et l´adoption; Bayard,  Paris, 2005,  pg 111), citando Caroline Eliacheff in «Malaise dans la psychanalyse», Esprit n.º 273, Março-Abril 2001, pg. 74, que quando se sabe que um médico não pode emitir um certificado de aptidão para a prática desportiva sem ter examinado a criança, «é de espantar a liberdade que tomam os investigadores norte-americanos de dizer o que quer que seja sobre crianças que nunca viram».
[5] Ver, a respeito destas falhas metodológicas, Loren Marks, «Same sex parenting and children´s outcomes: a closer examination of the Americam Psychological Association´s brief on lesbian and gay parenting», in Social Science Research, vol. 41, 4, Julho de 2012, pgs. 735-751 (especificamente sobre os estudos invocados pela American Psychological Association); Richard Fitzgibbons, «Same sex adoption is not a game», in www.mercatornet.com, 18/11/2011; e Xavier Lacroix, La confusion…, cit., pgs 109 a 118.
[6] «How different are the adult children of parents who have same-sex relationships. Findings from the New Family Structures» in Study Social Science Research vol 41, 4, Julho 2012, pgs, 752-770, acessível em http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0049 089 X12000610).
[7] Ver www.la-croix.com, 16/11/2012.
[8] Ver www.avvenire.it., 26/4/2013.
[9] Acessível em in  http://hudoc.echr.coe.int.
[10] Também acessível em in  http://hudoc.echr.coe.int.
[11] São José Almeida in Público de 24/12/2011.





Sem comentários: